sábado, 13 de outubro de 2012

Entre nessa aventura...

Estão postados nesta página os cinco primeiros capítulos...

 
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Capítulo I


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Madri/Espanha,1690.

         - Ramirez meu sobrinho, nos meados do percurso da procissão, lá pelas dezenove horas e um quarto, desça pela ladeira dos Relojoeiros, procure não ser visto, e siga direto para o empório. De lá, se enverede pelo corredor e me espere no escritório que tenho uma missão muito importante a lhe oferecer. Está aqui a chave, tome-a.

         - Pois não meu tio Paco, ao pé da letra, farei como o senhor determina.

         - Tenho certeza disso. Agora vá e não comente nada com Almerinda sua mãe, fui claro?
         - Seja feita a sua vontade senhor meu tio.

          Ao beijar-lhe a mão direita, retira-se do colóquio radiante, e ao mesmo tempo orgulhoso, por ter sido o preferido do seu tio na reservada missão que estava por vir.

Paco Sanchez de Pádua, um comerciante muito abastado da Rua San Martinez, nº. 148, esquina com a Calle de la Libertad, alojado  bem no coração de Madri, no ramo de joias e pedras preciosas, com filiais em vários subúrbios da cidade, viuvou ainda cedo. 

         Sua mulher Juanita, de uma beleza que prendia a atenção de todos, tinha tez branca e cabelos negros cintilantes que descia até a região da cintura. Sua estatura era mediana e corpo de forma escultural. Seu timbre de voz era macio, e olhos azuis que resplandecia como um diamante raro; filha única de uma linhagem tradicional madrilense, os Hernandes Rodiro, não resistindo à febre de mais de 40º graus, causada pelo surto de tifo que se abatera sobre a cidade e vilarejos, veio a falecer em seus braços. Ainda em seus últimos suspiros, trocando juras de amor com seu amado esposo, lamentava não lhe ter dado um filho que tanto desejava.   
 
         Beirando agora seus 36 anos, dotado de um porte atlético forte e atraente, ainda arranca suspiros das raparigas das proximidades. Não se veste tradicionalmente como seus parceiros afortunados, embora seus trajes sejam de primeiríssima qualidade, encomendados diretamente de Paris, capital da moda – prefere usá-los em talhes mais esportivos – que lhe permitam mais flexibilidade no andar e no agir. Enquanto os homens, seus contemporâneos, preferem se trajar em caráter mais clássico, e lhe fitam o olhar de maneira desaprovadora, paradoxalmente as raparigas da sociedade madrilense, como garantia de sua aprovação, suspiram ao vê-lo passar. 

         Paco, como era tratado simplesmente pelos amigos, após a morte prematura de Juanita, entrou de cabeça nos negócios internacionais como forma de esquecer o golpe que a vida lhe infligiu, levando ainda no fulgor dos seus 21 anos, a mulher que tanto amou. Seus amigos mais íntimos acreditavam que ele não iria resistir tamanha desventura, por isso não o deixavam sozinho por muito tempo, temendo que num ato de fraqueza, pudesse atentar contra a sua própria vida. Ledo engano, Paco Sanches de Pádua era como essas raras árvores de madeira de lei que não se derruba com poucas machadadas. 

         Seus negócios vão agora desde as pedras e metais nobres, ao latifúndio dentro e fora da Espanha. Sua maior aquisição está localizada nas Américas – mais precisamente na do Sul. Seus empregados – do varredor, passando pelos seus guarda-costas, aos seus ourives, vendedores, intermediários, compradores, enfim, até o mais baixo da hierarquia, lhes são fiéis até a última gota de seus sangues. Sua benevolência se estende a toda prole destes, não lhes deixando faltar alimento nem educação. Os que vão adquirindo maioridade e completando seus estudos regulares, vão sendo integrados nos diversos departamentos dos seus negócios. 

         Católico ao extremo, não perde uma missa aos domingos e feriados e, sempre com a sua pronta e benevolente ajuda às quermesses promovidas pelas paróquias das cercanias. Além de Almerinda Vitrúvio Almandez – sua irmã mais velha, viúva também, há mais dois irmãos que vivem no negócio de manufatura naval bem a uma légua do cais do porto.

         Determinado em estender seus tentáculos pelas Américas, vai agora ao encontro de seu sobrinho Ramirez, que o espera em seu escritório, o qual o julga merecedor dentre outros sete sobrinhos, em por em prática com segurança as suas pretensões além mar.
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Capítulo II


         - Obrigado por ter vindo Ramirez, tinha certeza que não me decepcionaria.

         - Podia apostar meu tio, seu pedido para mim é uma ordem. Cá estou para receber com humildade as suas determinações e poder cumpri-las com esmero e sem vacilações.

         - Agrada-me muito a sua postura meu sobrinho, pode ter certeza.

         - Estou pronto para ouvi-lo e ansioso para executar as suas ordens sem mais tardar.

         Num gesto lento e bem calculado, como estivesse a sorver com deleite a ansiedade estampada na face do seu sobrinho Ramirez, eis que Paco Sanches de Pádua gira duas vezes a chavezinha de bronze na fenda da fechadura da gaveta central de sua escrivaninha de madeira de lei, trabalhada em alto relevo. Puxa-a com força para si, e retira dela um rolo de manuscrito em pergaminho e estende-o sobre a mesa. Faz um gesto para o seu sobrinho se aproximar mais, e mostra-lhe um mapa muito bem elaborado pelos cartógrafos remunerados por ele para  tal missão que deseja colocar em prática. Ao desfraldá-lo sobre a escrivaninha, entusiasticamente diz:

         - Isso que você está vendo é o mapa da América do Sul. Aqui se encontra o gigante do continente – o Brasil. São mais de oito milhões de quilômetros quadrados de terras das mais férteis, e de imensas jazidas de minérios. Portugal que o colonizou, dele vem se locupletando há mais de um século, todavia não conseguiu ainda dilapidá-lo nem um sexto.

         - Engraçado meu tio, na faculdade, nas lições de direito territorial e marítimo, pouco se ensinava sobre essa ação portuguesa. É meio vaga essa questão entre Brasil/Portugal.   Divaga Ramirez.

         - Pois é. Com o feito em 1492, da descoberta da América por Cristóvão Colombo a serviço de Isabel Castela, Portugal entra em reboliço. A Coroa portuguesa, dois anos depois, através de uma bem sucedida ação de sua diplomacia, conseguiu pelo Tratado de Tordesilhas imensa porção das terras brasileiras, antes mesmo da expedição de Pedro Álvares Cabral. A sua Faculdade também não lhe ensinou que tanto a Espanha como Portugal foram laureados com o honroso título de “Rainhas do Mar”, pelos seus feitos náuticos obtidos, no século XV, os quais se estenderam até os meados do século XVI?

         - Sim, meu tio, isso é dito em prosa e verso pelas escadarias da escola. Fez uma pausa e apontando para o pergaminho continuou:

         - Bem aqui no sul deste gigante, entre as dezenas de ilhas e ilhotas, protegida por essa vasta selva atlântica, se vê esta baia exuberante – é a baia de Guarapirocaba, encravada no litoral norte da região. Ela é a única de todas que mais adentra ao continente, dando condições de garantias excelentes a esconderijos e trocas de mercadorias entre sitiantes e a pirataria de alto-mar.
         Ramirez atento em sua posição de ouvinte, com olhar perscruto sobre o mapa, não se contendo exclamou:

         - Não me diga que o senhor meu tio já esteve por lá?

         Paco, ignorando a pergunta de seu sobrinho, prossegue em sua narrativa:

         - Seguindo essa linha de corrente marítima até o seu final, que é nada mais nada menos que o canal da baia, onde as águas são mais cristalinas e mais profundas, podemos avistar aquela ilha ali que leva o nome de Corisco.  As águas que margeiam os seus dois lados são as dos rios que veem de encontro com a baia. Do lado direito é o rio Cachoeira, e do lado esquerdo são as águas do rio do Cacatu.

         Percebendo o interesse do seu sobrinho Ramirez à sua exposição, eis que Paco sente-se mais animado em prosseguir em sua dissertação. Por um instante deixa o pergaminho desfraldado aos olhos prescritivo do sobrinho, vai até a prateleira e retira uma garrafa de licor de tâmara, guardado para ocasiões especiais. Apanha dois cálices do pregador e manda Ramirez que se sirva também. Volta a ocupar o lugar de antes e recomeça sua exposição. Nesse dado momento ouve-se uma batida na porta. Paco pergunta quem é e a resposta vem em seguida:

         - Sou eu, Pe. Juan Scheverria! Abre-se um enorme sorriso em seu rosto e responde incontinente.

         - Já vou abrir Pe. Juan, espere um instante!

         Abre a porta e ao vê-lo, se envolvem num grande e cordial abraço.

       - Quanto tempo meu querido jesuíta fujão! Por onde andou que não consegui achá-lo? Nem sua Ordem quis me informar onde estava, embora eu insistisse em me identificar! Seus superiores e colegas pediam mil desculpas e tergiversavam quando eu os espremia. A princípio cheguei a pensar que você tivesse sido morto nesses conflitos de etnias que frequentemente ocorrem por aí, vítima de uma flecha desferida por algum desses índios malucos nessas selvas desconhecidas. Cheguei até ao ponto de ameaçar interromper minha ajuda financeira a Igreja se não me informassem o seu paradeiro. Confesso que me dei quase por vencido diante da inflexibilidade dos seus superiores. Mais tarde vim a saber que uma Ordem não tem nada a haver com outra, e que as minhas ameaças de interrupção de ajuda financeira não surtiria efeito nenhum sobre a sua, diante desses argumentos me rendi.

         Pe. Juan quase morria de tanto rir do jeito de seu amigo, e ao mesmo tempo sensibilizado pela enorme preocupação que este havia lhe dispensado.

         - Engraçado – disse Paco – eu a me preocupar com tua vida, e você fazendo pouco caso com esses risos de escárnio. Ora bolas!     
         - Não é nada disso Paco, não estou zombando não! Estou rindo sim do seu jeito satírico de expor o fato, lhe fazendo esquecer até de me apresentar o seu amigo aí atrás. Disse-lhe Pe. Juan com afeto.

         Desta feita, ao se entreolharem novamente, ambos começaram a rir pra valer ao ponto de contaminar o próprio Ramirez.

         - Desculpem, desculpem, é que eu já estou ficando velho, e esses espasmos costumam ocorrer de vez em quando. Este é o meu sobrinho Ramirez Vetruvio Almandez, Pe. Juan.

         - Vitruvio Almandez? Não seria por acaso filho do finado Arnaldo Almandez?

         - Exatamente padre. Conheceu meu pai?

         - De certo que sim, fomos adversários em várias competições de xadrez promovido pelo Esportivo de la Rose. Intercalávamos tanto nas vitórias como nas derrotas. Posso lhe garantir que sempre fora um competidor honesto – tanto sabia ganhar como perder. A propósito como está D. Almerinda?

         - Ah padre! Sempre com mania de doença para ganhar o meu compadecimento e dos seus três irmãos! (Risos).

         - É a única arma que dispõe – é natural que a use.  Intercede o padre em defesa de sua mãe.

         - O Senhor é jesuíta? De que Ordem? Por favor, não me interprete mal, é que eu não entendo muito dessa hierarquia clerical.

         - Não tem porque se desculpar não Ramirez. Pertenço a uma Ordem chamada Sociedade ou Companhia de Jesus, como queira, fundada por Santo Inácio de Loyola, nos idos de 1534, em Paris. Atuo mais precisamente nos campos e nas catequizações de silvícolas. Agora mesmo estive juntamente com mais dois colegas numa missão muito especial, a fim de apaziguar correntes divergentes na Igreja. Eis a razão do meu desaparecimento súbito, e do segredo por parte dos meus superiores e colegas. Virando-se para o Paco emendou:

         - Ficou claro agora Senhor Paco Sanchez de Pádua?

         - Desculpe padre, também não sou nenhuma pitonisa a vaticinar por aí os segredos do Clero. O que sei é que senti falta do amigo e apelei para as armas que dispunha. O fato é que eu precisava muito me aconselhar com alguém e nada melhor que o Pe. Juan pensei...

                 - E pensou muito bem! Pressinto que você escolheu o melhor conselheiro disponível no mercado (Risos). Logo agora que saímos vencedores de uma missão muito difícil que nos foi conferida.

         De súbito  levantou seu braço direito a meia altura  e com o dedo indicador em riste  orgulhosamente exclamou:
          - O Clero está  apaziguado!  Como recompensa eu e meus dois colegas ganhamos três meses de merecidas férias.

         - Padre, então aproveite e prove deste licor que mais parece o néctar dos deuses. É importado dos Emirados Árabes para ocasiões como esta. Tenho mais dois guardados ali, não hesitem em consumi-lo.

 Pe.  Juan Scheverria – Sujeito jovem, trinta e seis anos muito bem vividos. Poliglota e possuidor de uma cultura admirável. Com grande desenvoltura domina o Francês, Inglês, o Alemão, o Português e ainda alguns dialetos indígenas. Já esteve em missão no Brasil. Contraiu *sezão, e teve que ser repatriado em busca de melhores recursos. Tão logo retornou ao Brasil já participou de alguns dissídios envolvendo os aborígines e caboclos do interior baiano Sua prática esportiva regular é arremesso de dardos e corridas de curta distância. Tem corpo atlético, mede 1m75 de altura. Fala mansa e pausada. Conheceu Paco em um desses conclaves católicos, e a partir daí construíram sólida amizade.

         -Tua vinda aqui foi providencial padre! Estava mostrando a este jovem o interior do Brasil, mais precisamente a sua região sul.

         - Já ouvi falar dela Paco? É rica em minérios nobres. Afirmam até que a riqueza em seu subsolo é incomensurável. Precisaria várias frotas de navios para poder transportá-la.

        -  Pois é exatamente aí que eu quero  chegar. 
  
        - Com aquiescência de todos gostaria também de ouvir a sua explanação.
        - Claro, claro! Aliás, você também é uma peça nesse tabuleiro.

        - Como assim?

        - Você já vai ficar sabendo  amigão!

        - Confesso que estou começando a gostar dessa história (Risos). Vou me servir outra vez do néctar dos deuses – vocês me acompanham? Pergunta Pe. Juan.                 
       
         Recomeça Paco a sua dissertação:
         - Assim como essa ilha – o Corisco – espalham-se dezenas de outras maiores e menores por essa baia afora.

         Apontando com o indicador para o mapa, diz:

- Voltemos então aqui, quase no princípio da Baia. Bem se vê esta ponta de morro protuberante com os seus cento e cinquenta alqueires, adentrando em suas águas mais profundas, garroteando as suas margens direitas. Tem mais de dois mil e quinhentos metros lineares, e que leva o nome de Ponta Grossa – batizada por seus nativos caiçaras. Esta ilha serve de mirante as piratarias ocasionalmente, é ali que se embrenham e camuflam seus espólios.


Nota:  *Febre intermitente ou periódica.

         - Tio e essas águas que margeiam as esquerdas, também fazem parte do seu complexo? Pergunta Ramirez.

         - Sim e não! Mais dez ou onze milhas ao seu lado esquerdo, ainda estão às águas da baia de Guarapirocaba. A partir daí, já pertencem à baia de Paranaguá, dividida por essa linha divisória representada por essa corrente marítima bem visível a olho nu aqui no mapa.

         - Eu a vejo claramente, meu tio – não há como ignorá-la.

         - Pois bem, logo ao norte, ou seja, atrás da Ponta Grossa, há esses pequenos rios aparentando vielas. Nascidos ao longe, vêm se juntar bem atrás dela, daí formando um só com seu afluente indo em direção ao mar. Com a força que vêm ao darem de encontro com ele forma este redemoinho. É o chamado trigêmeo, formado pelos rios Menininho, Cutia e Faisqueira. Quaisquer destes três rios, a duas milhas de frente da Ponta Grossa, seguindo o sentido norte, levará infalivelmente você a uma outra bem escondida, do lado esquerdo que se segue, de sessenta e nove alqueires de terras de boa qualidade e de uma vasta vegetação que cobre toda a sua extensão. Habitada unicamente por índios daquela região e batizada de Sambaqui, devido a uma grande quantidade de colinas existentes nela, resultante de acumulação de conchas, cascas de ostras e outros detritos de cozinha depositados em seus diversos pontos. Os índios Carijós, seus habitantes, não denotam hostilidade, não obstante portarem arcos e flechas. Não medem muito esforço no trabalho, pois são providos de alimentos e outras necessidades que a própria natureza lhe dispõe. Aceitam, todavia, trocas eventuais com os brancos. Apreciam muito os objetos de cores vivas e flamejantes, assim como colares e braceletes, facas e facões com bainha em couro curtido.

         Ramirez Vitruvio Almandez, no vigor dos seus 25 anos. Boa aparência. De índole impetuosa, espírito aventureiro. Mede um metro e setenta e quatro centímetros de altura. Claro, de cabelos castanhos escuros – bem parecia com seu pai. Tez tostada pelo sol do verão que castiga Madri ainda nos seus primeiros dias. Veste-se originalmente quais os moços de sua idade. Acabou recentemente com um namoro que já duravam oito meses. Jurou dar um tempo em sua nova conquista. Não é como os seus contemporâneos que gastam o tempo em namoricos pueris. Bacharelou-se recentemente em direito pela “Academia Católica Fernando Garcia”. Ainda não decidiu se exerce ou não a profissão, pois nunca foi de sua vontade fazer advocacia – o fez, no entanto, a pedido dos seus pais. No momento ajuda seu tio Pablo em alguns dos seus negócios mais intrincados com competência e zelo que, em reconhecimento o remunera muitíssimo bem.

          - Afinal Paco, onde você quer chegar? Indaga o padre.

          - O que quero dizer a vocês dois, é que acabei de adquirir esta ilha, ou melhor – me associei a um fidalgo português, donatário da Capitania de São Vicente lá no Brasil, que me entrega a administração desta, ficando com ele uma parte menor na participação nos lucros.

         -E os nativos? Como o Senhor meu tio vai fazer para removê-los de lá? Pergunta Ramirez até com certa prudência.

         -E, quem garante que são cordatos, que não irão se insurgir contra quem pretender lhes roubar seu habitat? Arremata Pe.  Juan.

          -E quem disse que eu vou tirá-los de lá?

         - Não estou entendendo – explique-se melhor Paco! Agora é você que escarnece a situação! Isso é uma loucura, ou melhor, você está brincando com uma coisa muito séria! Você não conhece os silvícolas, não aquilata as suas reações. Eu os conheço muito bem, sei o quanto eles são capazes quando se sentem ameaçados! Argumenta Pe. Juan.

         - Como já disse, não pretendo retirá-los de lá, e sim, conviver com eles pacificamente trabalhando para nós.

         - Você quer dizer como escravos? – pergunta Pe. Juan de cara feia, e em tom grave de voz, dando em seguida um salto da cadeira.

         - Remunerados é claro – os escravos nós os recambiaremos diretamente da África. Esclarece Paco.

         - E você acha que eles – os índios aceitariam “pacificamente” essa situação? Mas uma vez torno a repetir: você não os conhece!

         - Nós tentaremos pacificá-los tornando-os nossos amigos. Rebate Paco.

          - De qualquer forma Paco, não deixa de ser uma aventura muito arriscada. Isso requer no mínimo muita experiência no trato com eles, e no máximo muita confiança por parte deles – e isso é desgastante Paco, pois leva tempo e se consome dinheiro...

         - São os riscos que nós devemos correr – há outra maneira? Se tiver, por favor, diga Pe. Juan, mas não fique aí com esse ar de censura.

         - Da minha parte, levando em consideração todas as possibilidades que possam advir desta empreitada, acho-a, contudo, excitante e, não vejo como não tentar achar fórmulas para resolver da melhor maneira essa situação de impasse virtual. Intervém Ramirez.

         - Ramirez, na prática a teoria é outra.  Este caso requer não é para principiantes. Sinceramente, não vejo em vocês os mínimos ingredientes exigidos para a missão.   De maneira terna, Pe. Juan tenta convencê-los.

         - Mas como diz o velho chavão: se não puder com o inimigo, una-se a ele. Os índios poderão ser cooptados para que se tornem co-partícipes dos negócios gerados na ilha.  Além dessa variante, há outras que poderão ser testadas, se não surtir os efeitos esperados. Contra argumenta Ramirez.

         - Sinceramente não estou muito convencido que isso possa dar certo, além do mais, tornar-nos-íamos reféns deles dentro de seu próprio território, caso burlássemos alguns itens do tratado. Digo isso, e que soe como um alerta. Os índios, não obstantes puros, o são também, de uma capacidade de raciocínio muito aguçada. Percebem de longe quando alguém quer lhe passar para trás. Diz Pe. Juan andando pensativo de um lado para outro da sala.

         - De qualquer forma haveremos de arriscar. Você Pe. Juan, por exemplo, tem muita experiência no trato com os silvícolas, até poderia me ajudar nessa empreitada, não? Quanto ao Ramirez, gostaria que comandasse essa expedição. Ah! Gostaria também que você, Pe. Juan, conversasse com os seus dois colegas para que fossem também.

         - Você quando põe uma coisa na cabeça não há quem tire hein, seu Paco Sanches de Pádua! No momento eu não lhe garanto nada. Vou estudar melhor essa questão, e depois, eu lhe dou a minha resposta. Replica Pe. Juan.

         - Então bebamos junto o néctar dos deuses? Propõe Paco, esfuziante a essa altura.

         - Ainda é muito cedo para comemorarmos, mas de qualquer forma sirva-me mais um antes de eu ir embora.

         - Eu sabia que esse licor iria agradar a todos! Deixe-me abrir outra garrafa, pois essa aqui pelo jeito já acabou. Quanto a você Ramirez também terei que esperar por sua resposta?

        - Se sua vontade meu tio é que eu siga com a expedição – assim será – seguirei para o sul do Brasil e aportarei na ilha de Sambaqui, ao norte da Baia de Guarapirocaba.

        - Ainda bem! Cheguei a ficar preocupado que você fosse ser influenciado pelos argumentos do Pe. Juan.

        - Não obstante os argumentos do padre não deixem de conter uma grande dose de coerência – essa empreitada esta soando como o maior desafio da minha vida. Transbordo de emoção só de imaginar a hora chegando meu tio.  Sentencia Ramirez com Risos.

        - Assim é que se fala meu sobrinho! Se seu pai estivesse vivo por certo se orgulharia de você. Já tenho quase todos os elementos da expedição escolhidos, só estou esperando uma leva de escravos que me foi oferecida pelo meu sócio português. Disse que estão sendo transportados de Luanda e Bengala. Claro que também reconheço a imprescindibilidade do Pe. Juan e de seus colegas para que se complete o plantel, todavia pressinto que a viagem terá que ser adiada, uma vez que o meu amigo aí está um tanto titubeante. Diz Paco com um gesto de cabeça dirigido ao sacerdote.

         - Você é mesmo um reconhecido embusteiro Paco! Não vem com essa pantomima já desgastada querendo me sensibilizar que eu já a conheço de cor e salteado. Você não nos convidou e sim nos sentenciou, e isso inclui o Ramirez, sem nos dar nenhuma alternativa, isso sim! Mesmo que eu me recusasse a ir, você usaria de outros artifícios junto aos meus superiores da igreja e eles me mandariam a missão.

        - Meu Deus! Como você pode imaginar isso de mim, me conhecendo a fundo? Você sabe do respeito e a estima que tenho por vocês dois, jamais mandaria vocês a uma empreitada conhecendo seus riscos.

        - Ah, Paco! Pare de representar que isso não lhe cai bem! Se me quiser na missão terá que  esperar minha decisão. E, se tiver que adiar a viagem, pois adie que eu não estou nem um pouquinho preocupado. E, agora se me derem licença tenho que ir, como eu estou de férias, preferi ficar numa hospedaria para não ter que incomodar ninguém. Boa noite cavalheiros!

        - Espere! Nós o acompanharemos. Além do mais não é sensato andar por essas ruas escuras essas horas da noite assaltantes ficam à espreita a espera de uma presa para tirar-lhe o couro. Chamarei meus seguranças para ficarem na retaguarda – esperem um instante só. Paco se envereda rapidamente pelo corredor e desaparece.

         - Você está certo! Não vou dispensar as suas escoltas, pois em ocasiões de festas há larápios  se insurgindo por todos os lados.

         - Pronto Pe. Juan, já podemos ir! Eles já estão nos esperando na porta do empório. Vocês não hão de perceber. Uns vão adiante e outros garantem a nossa retaguarda. Passaremos primeiro pelo seu hotel Pe. Juan e em seguida iremos à casa de minha irmã para entregar o Ramirez, certo senhores? Amanhã às cinco da tarde reiniciaremos a nossa conversa e espero que o meu dileto amigo e conselheiro também esteja presente.

         - Farei o possível para não faltar! Responde o padre.

         - Aproveitando a sua presteza e boa vontade, será que haveria inconveniência em trazer também seus dois colegas de batina? Incontinente, num gesto de defesa e paz antecipada, com as duas mãos para o alto, completou:

         - Só estou perguntando e não sentenciando, que fique bem claro! Prontificou-se Paco em esclarecer.

         - Vamos ver o que posso fazer. Espero que não tenham ainda viajado para casa de seus familiares onde pretendem passar boa parte de suas férias.

         - Caso eles queiram vir, por favor, Pe. Juan me avise ainda pela manhã para que eu possa me preparar melhor para recepcioná-los condignamente.

         -Não é preciso Paco, eles não são pessoas dadas a cerimônias pomposas – são simples e de fácil entendimento.

         - De qualquer forma ficaria muitíssimo grato se você me avisasse, pois não?  
      A festa de São Thiago, em Madri, costuma ocorrer logo no primeiro domingo de janeiro, e se estende até o próximo com uma grande procissão saindo da Matriz de N.S. da Conceição, carregando o santo no andor até a sua própria igreja na rua do cais do porto. Ao término do *corso acontece a esperada queima de fogos de artifícios.  Nesses dias a cidade se enche de romeiros. Muitos vão a pé de suas cidades e lugarejos até a sua Igreja, num ritual de penitência, em pagamento de suas promessas pelas graças recebidas. Outros vão mais além, se entregando às imolações, como forma de receber graças e indulgência.


         Madri é uma cidade católica por excelência, vive todos os dias do ano repleta de viajantes, viandantes e romeiros, vindo das cidades mais próximas às mais longínquas. Isso lhe rende divisas, e ajuda a sustentar sua economia. Outra atividade é seu potencial na indústria naval. Ela, com o know-how do título que ostenta juntamente com Portugal de “Rainhas dos Mares” ampliam a cada ano suas exportações de naus e navios aos países que margeiam os continentes. Seu principal concorrente é Portugal com seus estaleiros portentosos e possuidor de tecnologia moderna na astronomia. Isso já vem desde há dois séculos, onde o infante *D. Henrique, seu incentivador mor, dava muita importância ao estudo da astronomia na famosa “Escola de Sagres”, onde foi um dos seus maiores incentivadores e mantenedor. Com sua morte, veio arrefecer-se um pouco o ímpeto dos audazes discípulos de Sagres, a aonde então, a Espanha, veio igualar-se a ele.  

Capítulo III

         A Expedição já tinha nome - chamar-se-ia “Eterna Juanita”, em homenagem a sua mulher prematuramente falecida de febre tifoide. Seria composta de sessenta homens e mulheres, contando com os escravos que viriam para se juntar a ela. Paco abriu um crédito ao seu contratador, homem de muita experiência e de não menos confiança para compra de suprimentos com sobras para que nada faltasse em viagem e muito menos no primeiro mês de estadia na ilha, como também na escolha a dedo dos elementos contratados. Estava estudando também a possibilidade de mandar em seguida mais dois navios abastecidos de suprimentos, e mais mão-de-obra especializada, incluindo mais escravos.

         O navio já se encontrava atracado no cais do porto recebendo todo o abastecimento necessário. Estava implícito também, que não seria içada a bandeira espanhola em mares brasileiros para não despertar atenção por parte dos portugueses, especialmente dos possuidores das “Três *Sesmarias” das bandas de Guarapirocaba – muito embora de posse de salvo-conduto, expedido pelo fidalgo português donatário da Capitania de São Vicente – agora seu sócio.

         Paco queria se cercar de todas as garantias para que fosse levada a bom termo a finalidade da expedição, e consequentemente o bem estar de todos os expedicionários - mormente onde se encontrariam seus dois queridos amigos e sobrinho. Decidiu que até o dia do embarque, instruiria o seu sobrinho Ramirez usando para isso mestres no assunto, que já se mostrava ávido em querer se inteirar desses assuntos.

         Em todas essas decisões, Paco nunca deixou de pedir a Deus e ao seu santo devoto, orientação e ajuda nessa empreitada que logo se iniciaria. Queria a todo o custo, e não mediria sacrifício para que os três jesuítas fossem também, tamanha a confiança que depositava no Pe. Juan. Enfim, Paco se acercara de homens do melhor naipe, desde o feitor até os seus capatazes – portanto, todas as providências seriam tomadas com toda convicção.

         Porém, ficara marcado em sua lembrança o aviso de seu amigo Pe. Juan, sobre o caráter dos nativos das diversas regiões do Brasil Colônia. E, isso começou a suscitar nele a necessidade de uma reavaliação no processo de desembarque da expedição àquela ilha. Queria mais dados, mas a quem recorreria afora os três jesuítas? Isso lhe consumiu várias horas acordado, só se desprendendo do problema altas horas da noite quando o  sono já lhe abatia os sentidos. Só veio se dar conta de si, quando a empregada Elvira bate a porta de seu quarto com o café já a sua disposição.

         -Que horas são Elvira?

         -São nove horas e um quarto, senhor Paco – hoje o senhor dormiu um pouco mais – não costuma acordar essas horas.

Nota: *Era o nome dado às terras que, na época do império o Rei de Portugal cedia aos agricultores que eram os sesmeiros para plantar e cultivar.

 Segundo o historiador Cláus Luiz Berg, do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná, em seus livros, “Antonina, a Vovó do Paraná,” e “Antonina – 360 anos de História,” ela fora fundada com a vinda dos três sesmeiros portugueses em 1646. Antônio de Leão, Manoel Duarte e Pedro de Uzeda. Na época foi lhe dado o nome de Guarapirocaba, que só veio a ser mudado com a visita de  D. Pedro II ao município em 1881, que, em homenagem ao seu filho Antônio, passou a se chamar Antonina – portanto, um onomástico de Antônio.

         -Fui dormir muito tarde, só isso. Alguém me procurou, tem algum recado?

         -Espere um pouco Senhor Paco que eu vou chamar o José. Parece que alguém lhe mandou uma mensagem sim.

         Nesse ínterim, Paco dá um saldo da cama e se troca depressa. Lava o rosto, completa sua higiene matinal e quando ensaiava sair do quarto se depara com José que já vinha ao seu encontro.

         - Bom dia senhor Paco, dormiu bem?

         - Sim José – então, tem alguma coisa a me entregar?

         - De certo que sim! O Pe. Juan lhe procurou, mas como o senhor estava dormindo não quis lhe incomodar, mas deixou um recado confirmando que os seus dois amigos padres também estarão presentes na reunião.

         - Oxalá! Foi a melhor notícia que eu poderia receber, obrigado José, você é um grande rapaz. Com alegria estampada na face despede-se de José.

         - Espere aí senhor Paco! O pessoal do empório está lhe aguardando impaciente, pois disseram que receberam mensagem de um tal português que diz ser seu sócio, e que o informa que a encomenda já está no cais do porto.

         - Meu Deus! Tudo de uma vez só é de mais para um só coração. Vou já pra lá!

         - Seu Paco, o senhor não vai sair sem antes tomar o seu café, não vou deixar não! O pessoal do empório que espere. Vá tratando de sentar aqui e comece a comer desses pãezinhos de queijo que fiz agorinha. Além do mais, o senhor nunca sai sem antes fazer a sua oração a São Thiago ali no altar. Me obedeça!

         - Obrigado Elvira por me chamar a atenção! O que seria de mim, se não fosse você cuidando-me com tanto zelo. Vou fazer sim o que me manda, e pedir desculpas ao meu santo querido pela falta de atenção por alguns segundos.

         - Assim é que se fala senhor Paco! Tenho a impressão que a D. Juanita está lá no céu regozijando de alegria.

         - Assim seja, Elvira, assim seja...

         Após cumprir o seu ritual, vai direto para o empório, sendo seguido discretamente pelos seus guarda-costas.    
               
         - Ramirez, por onde andou ontem que chegou tão tarde, você não costuma fazer isso? Pergunta D. Almerinda com ar inquisidor.

         - Encontrei-me com alguns amigos minha mãe, e fomos ao clube jogar uma partida de xadrez.

         - Engraçado, sua irmã o viu através da vidraça da janela do seu quarto chegando ontem em companhia do Paco, seu tio.

         - Sim é verdade, o tio Paco também estava no clube e ao me ver deu-me carona, pois já era tarde, e sair sozinho por aí nessa escuridão é muito arriscado – a senhora não acha minha mãe?

         -Sim, sim! Foi muito sensato da parte dos dois.

         -Se a senhora me der licença tenho que ir à firma, pois meu tio já deve estar sentindo a minha ausência.

         -Hoje lá pelas cinco da tarde irei ao cemitério levar flores ao finado seu pai. Vou com Mercedes sua irmã, você não quer ir junto?

         -Desculpe minha mãe, mas hoje não vai ser possível, pois tenho uma reunião com todos os empregados do meu tio. São novos procedimentos que serão empregados que na burocracia das empresas. Mas fica para a próxima semana  – não faltarei, fique certa!

         Está bom filho, vá e entregue o meu beijo de dedicação ao meu irmão caçula, e diga-lhe que eu o estou lembrando que faz três dias que ele não vem me ver.

         -Pode ficar tranquila que eu darei o seu recado. Agora me dê sua bênção e até mais à noite.

         Paco ao chegar ao empório deparou com uma romaria na porta do seu escritório. Eram os compradores, vendedores, capatazes, funcionários querendo passar os negócios do dia. Todos o olharam pasmo, pois nunca aconteceu de ele chegar tarde à empresa. Sempre foi o primeiro a chegar e o último a sair. Pensavam alguns que alguma coisa estava acontecendo de anormal, pois nem seu sobrinho estava presente.

         Após atender um a um com muito boa vontade e presteza, foi a vez de receber seus funcionários que lhe passavam o movimento do dia, inclusive o encarregado das correspondências, uma espécie de porta-voz, lhe explicava que o seu sócio português lhe avisava que tinha uma encomenda lá no cais do porto, e que já tinha tomado as devidas providências mandando pra lá o seu contratador para recebê-la e não deixar faltar nada. Estava então tudo sobre controle, dizia o seu porta-voz.

         - Vocês são muito competentes, tenho muito orgulho em tê-los trabalhando para mim.
         - Obrigado Paco pela confiança que nos deposita, se nós podemos resolver essas questões, porque incomodar você que anda tão atarefado com a expedição? Então, como foi a reunião de ontem a noite, convenceu Ramirez?

         - Sim. Esteve também presente o Pe. Juan Scheverria. Ficou acertado para hoje as cinco em ponto uma nova - agora com a presença de mais dois jesuítas, colegas do padre.

         -Não me diga Paco que as coisas estão se encaminhando tão rapidamente assim? O Pe. Juan não andava  sumido?

         - Sim, esteve resolvendo uns problemas para a igreja, mas já voltou e o que tudo indica irá, espero convencer seus colegas a irem também.

         - Sabe Paco que às vezes me dá vontade de ir também?

         - Nem pensar! Qual é, agora todos resolveram querer me abandonar? Você Carlos é imprescindível aqui! Além do mais nem você quanto eu não temos mais idade para aventuras. Resolva esta questão dos escravos com o contratador da melhor maneira possível, só me avise quantos são no total.

        - Parece, ainda não tenho dados oficiais, mas está na casa dos sessenta, dos quais quinze são mulheres. Disse seu sócio português que lhe custou uma fortuna. Que são todos de boa reputação e higidez, com uma média de idade que varia entre vinte e cinco a trinta anos. São todos fortes e altos. O contratador Timóteo foi responsável pela triagem junto a eles, você sabe como ele é muito meticuloso em tudo que faz.

        - Onde estão eles? Em que parte do cais?

        - Já estão todos alojados no navio sendo bem alimentados e em ótimas condições de higiene – não era assim que você queria Paco?

         - Não se esqueça Carlos que eu e você somos cristãos católicos, e que devemos abominar veementemente como condição, todas as formas de *sevícias e injustiças praticadas a quaisquer que sejam as raças. Ah! Procure também saber com o Capitão, por quantos meses e dias durará o périplo? Fale também com os cartógrafos se já terminaram a carta marítima da baia e seus afluentes do lugarejo de Guarapirocaba.

         - Ficaram de me entregar hoje à tarde Paco – está tudo sobre controle. Estive lá ontem – ficou muito bonito e fácil de entender.

         Nesse momento Ramirez acaba chegando, e após transmitir o recado de sua mãe, se envolve na conversa. Carlos passa em seguida a lhes prestar todas as informações, inclusive de que ele terá a partir de amanhã aulas com os práticos em navegações além mar. 

        - Acho conveniente eu dar um tempo sem ir até lá ver sua mãe. Suponhamos que no ardor de nossa conversa, eu cometa algum deslize, você sabe o quanto ela é perspicaz, vai especular o tempo todo até arrancar de mim uma confissão. Sendo assim, vamos esperar para a véspera da viagem – aí sim não haverá mais tempo dela usar de seus argumentos de persuasão com você. Estou certo Carlos? Já que o Ramirez, nesse caso é suspeito de exarar opinião.

        -Está coberto de razão, Paco – D. Almerinda não é mulher de se conformar facilmente – ela usará de todos os recursos para impedir a sua ida Ramirez.

        -Eu sei senhor Carlos, irá improvisar tantos chiliques que será difícil não atendê-la. Diz Ramirez.

        Nesse caso esperemos até a antevéspera da viagem. Afinal, quem vai lhe dar a notícia, você Paco ou o Ramirez? Pergunta Carlos.

        - Que você acha?

         -Acho a decisão muita sensata. Querem uma opinião? Nada de prolixidade – terá que ser breve e resumido – e que não cause impacto.

        -Seguiremos o seu conselho, Carlos, de qualquer forma muito obrigado.

        - Agora, se me dão licença, vou almoçar e passar à tarde no cais do porto. Um montão de afazeres me espera por lá. Tome Ramirez o endereço dos seus professores – eles esperam por você amanhã às quatro da tarde, não falte. Até mais senhores. Até lá já estarei de posse da nova carta já concluída pelos cartógrafos. Você irá de posse dela; seus professores a estão esperando.

        - Quanto a mim darei um pulo até a cantina do seu Romualdo e almoçarei por lá. Quero aproveitar e ir a uma loja aqui bem perto comprar algumas roupas e botas adequadas para a viagem. Diz Ramirez levantando-se da cadeira.

         - Bem pensado Ramirez, nada se deixa para a última hora. Também vou almoçar e dar uma passadinha pelo banco e assinar alguns papéis. Hoje vai ser um dia que terei de usar de muita diplomacia para convencer o Pe. Juan e seus dois colegas. É de suma importância eles irem com você.

        - Eu sei meu tio, por isso no que depender de mim, não medirei esforço para fazê-los a aceitar.

        - Se o Pe. Juan concordar em se integrar a nós, os outros seguirão a sua decisão. Pressinto isso.

        Quando Ramirez e Paco se preparavam para deixar o escritório, eis que o contratador aparece rápido e arfante no escritório, e exclama:

        - Houve uma tentativa de fuga dos escravos. Alguns já foram capturados, outros estão sendo ainda procurados, mas suas capturas serão iminentes – apenas uma questão de horas.

        - Mas quando isso aconteceu e como eles conseguiram? Pergunta Paco muito preocupado.

        - Não sabemos ainda, senhor Paco! Só sei que eles se encontravam juntos em convívio amistoso no porão e soltinhos, sem grilhões de nenhuma espécie, e sendo bem tratados – foi a determinação que recebi do senhor Carlos, e repassei aos empregados que os vigiavam. Eles, decerto, num descuido ocasional, tomaram-lhe as armas e os mantiveram como reféns. Pressupõe-se que eles já estavam se preparando para isso desde a sua vinda. Os que vieram trazidos de Luanda, não estavam de acordo com os de Bengala. Houve até um princípio de tumulto entre os dois grupos, todavia foi debelado pela intervenção eficaz dos nossos empregados. No relatório entregue a mim, assinalam os nossos empregados, que há na facção de Luanda um negro de estatura acima da média, de boa aparência, de sabedoria inconteste, e que é respeitado pelos seus colegas como uma pessoa de poderes extrassensoriais. Diz-se até, que seja uma espécie de xamã  que previa essa insurreição como uma enorme estupidez. Ele atende pelo nome de  Cabima. 

          - Muito interessante esse detalhe Timóteo. Quero mais informações sobre esse episódio e sobre tudo, sobre esse feiticeiro – sua ficha completa.

          - Vou providenciar isso com máxima precisão. Agora mesmo, vim só para deixar-lhe a par do ocorrido. Qualquer novidade eu lhe informo. Nessas alturas o senhor Carlos já deve estar lá me esperando. Há mais alguma coisa que queira me pedir?

         - Não Timóteo, qualquer coisa eu transmito ao Carlos!

         - Então já vou indo, até.

            Para Paco, um problema inesperado – ter que agora, logo no limiar da viagem, destrinchar essa intrincada situação. Seu caráter de homem sensível, de profunda religiosidade, e temente a Deus, não o permitia que desse de ombro a esse inusitado incidente, e deixasse a expedição partir sem antes conhecer a origem deste fato e entregar ao seu sobrinho o caso completamente equacionado. Dar-lhe-ia as ferramentas necessárias para se por ventura, tivesse que enfrentar a mesma situação no decorrer da viagem, saberia como fazê-lo. 
          Ficou horas a pensar a quem pedir ajuda para solução do problema. Veio-lhe então à mente, a figura do Pe. Juan. Sim, estava aí a peça que faltava em seu tabuleiro! Ele era a pessoa indicada a lhe ajudar. Nada melhor que um jesuíta que conhece como ninguém conflitos étnicos, quantos casos já teria antes resolvido? Veio então em sua lembrança um ocorrido há dois anos atrás, em Tanera, bem ao norte da Espanha, quando os comerciantes na maioria libaneses, se sentindo escorchados pelos cobradores de impostos, se recusaram a pagar suas taxas imposta pela Exatoria de Rendas, ocasionando um grande tumulto seguido de mortes, só chegando ao término pela pronta intervenção do Pe. Juan, chamado as pressas a intermediar tal conflito.

         Por um decreto do Governador daquela província, foram reduzidas drasticamente as taxas e impostos cobradas até então, e a Exatoria passou a conviver a partir daí em estado de graça com os comerciantes insurretos. Outros feitos foram também conquistados pela intervenção pronta e diplomática da Ordem da Companhia de Jesus, sempre tendo a frente à figura respeitada e negociadora desse jesuíta de origem hispânica, que mais parece um embaixador dentro do seu próprio território a resolver conflitos desta magnitude. A Ordem o tem em seu mais elevado apreço, e por várias vezes já o indicaram para promoção em cargos mais altos da sua hierarquia, sendo, entretanto, rechaçada veementemente por ele, com o argumento que isso tolheria sua ação e desenvoltura no trato com as partes litigantes.