sábado, 13 de outubro de 2012

Capítulo IV



         - Paco meu amigo, é com grande satisfação  que estamos aqui. As coisas estiveram agitadas estes últimos dias não? Pe. Juan percebe nos olhos de Paco um brilho esfuziante de entusiasmo ao recebê-los.

         - Pois é meu caríssimo sacerdote e o senhor por onde andava que não dava as caras hein?

         - Ossos do ofício me impediram de procurá-lo por esses dias meu amigo. Me deixe apresentar  seus novos amigos. Este é o Pe. Ricardo de Albuquerque, de Andorra, e este é o Pe. Francisco Fanjúcio, meus colegas de Ordem.

         - Tenho o imenso prazer em receber vocês em meu escritório. Estou radiantemente feliz por vocês terem vindo – por favor, sem cerimônia, sentem-se. Este é o meu sobrinho Ramirez Vitrúvio Almandez. Ouvi muito sobre  vocês. Pe. Juan os exalta fervorosamente.

         -Temos levado muita sorte em nossas embaixadas, isso sim. E isso nos estimula a exercitarmos cada vez mais essa atividade. Disse o Pe. Francisco dirigindo-se aos seus colegas com risos.

         - Pelo jeito vocês devem gostar muito de exercer essa diplomacia, não?

         - Não! Acho que estamos ocupando um lugar que de veria ser exercido pelos nossos governantes, e deixar a Ordem de mãos livres para as coisas que realmente lhe são intrínsecas.

         - Como, por exemplo? Pergunta Paco.

         - Apascentar índios, caboclos, posseiros. Dar-lhes um pouco de educação, ensinando-lhes a ler e a escrever, que é uma forma distinta de comunicação e integração dos povos. A crença no monoteísmo e na religiosidade – incutindo-lhes que todos nós somos irmãos, independentes de cor, raça, de ser rico ou pobre. Essa é a nossa função precípua – foi para isso que Inácio de Loyola recebeu essa inspiração divina de fundar a Ordem. Argumentou o Pe. Ricardo.

          - A Ordem de Jesus foi fundada para atuar nas selvas, nos lugares mais ermos do planeta e, para termos como parceiros esses os quais o Pe. Francisco acabou de mencionar com muita propriedade. Todavia, de vez em sempre, somos desviados de tais missões, não por culpa dos nossos superiores, diga-se de passagem, mas pelo atrelamento que se tornou cultura entre a Igreja e o Estado. É claro que temos lutado contra essa situação, porém deparamos sempre com fortes resistências por parte do Estado leviatã. Contra argumenta o Pe. Francisco.

         - Tudo isso tem uma origem: a dependência da Igreja ao Estado, advinda puramente da “necessidade” entre aspas. Por outro lado, o clero não se importou em criar mecanismo que resguardasse a sua independência, ou por comodismo mesmo, ou por puros interesses inconfessáveis. Conclui Pe. Juan.

         - Esse caldo vem desde o século XI e se fortaleceu durante os anos, de forma que fica muito difícil mudar o status-quo do dia para a noite. Mas ainda espero um dia que o Estado será Estado e a Igreja, Igreja – harmoniosos sim, mas independentes. Disse Paco.

         -Todos nós esperamos tio Paco, só assim a Igreja poderá cumprir com destaque o seu papel junto aos povos e restabelecer a sua histórica missão aqui na terra.

         Paco, após essas observações – como se fosse uma espécie de aquecimento preliminar, ou um aperitivo como queiram, voltou a abrir a gaveta de sua escrivaninha, e após retirar dela os mapas, se pôs a descrever tudo que já fizera antes, aos olhos agora de mais dois jovens jesuítas.

         À medida que se aprofundava em sua explanação, mais seus convidados se sentiam a vontade e mais entusiasmados a ponto de já ensaiar perguntas, observações, retorquir em alguns pontos etc. Porém, quem se divertia mesmo pra valer com toda essa história era Pe. Juan com um risinho maroto disfarçado ao canto dos lábios, delatando-o aos olhos atentos de Paco, que não se dando por vencido, enfrentava com tenacidade seu escárnio sutil, como se estivesse pagando pra ver até onde ia o seu amigo dileto com aquela pantomima extemporânea.

         Entretanto, é importante acrescentar em tudo o que já foi dito em seus dados biográficos, que Pe. Juan sobre tudo, era um gozador contumaz. Com grande talento, conseguia transformar em humor, quase tudo o que se apresentava sério. Isso era uma constante em sua personalidade. E isso, Paco precisava urgentemente aprender a ir se acostumando para não ter que se irritar sempre. Pe. Juan aprendeu a desenvolver esse seu lado espirituoso, mais pela necessidade de ter que diluir os grandes problemas que teve que enfrentar em seu cotidiano. Tinha em mente que quanto mais os valorizamos, mais eles se tornam complicados e de difíceis soluções. Quando você os minimizam ou os escarnecem, eles passam a ocupar um lugar comum dentro do contexto de prioridades, dizia ele.

         Eis a bula para todos os problemas intrincados resolvidos por esse jovem jesuíta, nascido na Ilha de Tenerife – uma das Canárias de possessão espanhola – conterrâneo do Pe. José de Anchieta, falecido em 09/06/1597 no Brasil, na cidade que leva o seu próprio nome. 

         Isso se deu com montes de casos relacionados aos silvícolas, conflitos étnicos, os camponeses, e por último com a própria Igreja. Diríamos até, que o Pe. Juan se tornara um mestre na embaixada de integração dos povos em suas diferentes raças e conceitos. A empregada, encarregada do serviço de cozinha, bate a porta do escritório, e pergunta se já pode ser servido o café? Após o assentimento de todos, ela se retira e volta logo em seguida trazendo-o sobre um carrinho que mais parecia uma refeição – tanto eram os quitutes que o acompanhava que deixaram maravilhados os convidados de Paco.

         Paco por sua vez, embora não quisesse demonstrar, ficara muito feliz em ter agradado a todos, e lançou um olhar sutil de agradecimento à sua cafeteira que o percebeu e o retribuiu da mesma forma. Fizeram uma pausa que durara mais que o previsto, haja vista  a eclética mesa exposta aos convidados, ainda estar sendo degustada sem nenhuma pressa.

         - Vocês ainda não viram nada – o Paco traz guardado um licor que afirma ser importado do Oriente-Médio – é como estar sorvendo o néctar dos deuses como ele diz, e eu assino em baixo. Comenta o padre.

         - Agora Pe. Juan você estragou a surpresa que eu queria deixar para o final da nossa palestra aos meus novos amigos, e arrematar com bordado de fios de ouro a nossa sólida amizade que pressinto estar nascendo aqui.

         - A recíproca é verdadeira meu Caro Paco – uníssonos redarguiram os padres Francisco e Ricardo.

         - A hora que você quiser dar prosseguimento a explanação, estaremos prontos. Fomos muito bem servidos e confesso que nem me lembro mais da última vez que me deliciei com um tão farto lanche, ainda mais preparado com mãos tão divinas como sua Elvira.

        - Padre! Agradeço muito sensibilizada pelos elogios tão  verdadeiros, e aproveito para tomar-lhe sua bênção.    
                                     
        Num gesto carinhoso, Pe. Ricardo toma-lhe as mãos e elevando-as a meia altura, deu-lhe sua bênção, que foi ratificada pelos demais padres presentes. Muito emocionada Elvira beijou as mãos de cada um deles e retirou-se com os olhos marejados de tanta emoção.

        Num breve relato, Paco expõe aos demais presentes que a finalidade da expedição, além da integração dos nativos é explorar as jazidas existentes na região, mais especificamente na ilha, que pelos relatos dos seus antigos posseiros transmitidos através do seu sócio português.

        -Existe uma quantidade incomensurável de ouro e prata em seu subsolo ainda inexplorada. Antes que aventureiros e indivíduos de caráter duvidosos se apossem daquele lugar e promovam uma carnificina com os nativos daquele lugar, por que não nós cidadãos de boa índole não nos aventurarmos nesta empreitada?

        Essas últimas palavras proferidas por Paco causaram uns profundos impactos nos demais presentes – mais, acentuadamente Pe. Juan, que a partir daí, passou a mostrar-se menos arredio aos apelos do amigo, e se interessar mais pela causa.

        - A nossa finalidade não é compactuar com a pirataria, comprando seus produtos, adquiridos por meios ilícitos – criminosos – mas sim, combatê-los dentro do nosso campo de atuação. A nossa missão é sobre tudo, explorar o material que abundam à natureza e, transformá-lo em produto comercializável, somente isso. Argumenta Paco.

         – Foi por isso que eu preparei essa expedição, analisei-a debruçadamente, pesando todos os pontos contrários e vi que a nossa intervenção não tem nada de deplorável, é unir a questão humanitária à comercialização, como regra precípua de desenvolvimento de uma comunidade. Isso não quer dizer tirar o índio de seu habitat e transformá-lo em um ser “cidadantino” – mesmo porque, pelos seus valores e conceitos tão nobres não o quererá. 

        - Para quando está marcada a viagem, Paco?  Pergunta o Pe. Ricardo.

        - Só está dependendo da resposta do Pe. Juan e de vocês.

        Por um instante os três jesuítas se entreolharam e num ato contínuo, ensaiaram andar de um lado para outro em postura de meditação na sala espaçosa do refinado escritório, ataviado de quadros de grandes pintores espanhóis contemporâneos. Num dos lados da parede, encontravam-se fileiras de poltronas em couro curtido, disposta a acolher um número bem maior de visitantes. Havia outra escrivaninha menor, distante um pouco da sua – que muitas vezes servia para uso de sua secretária na redação de cartas, requerimentos, ofícios, contratos, etc. Chamava também atenção, um mimeógrafo manual quadrado, de tamanho regular, exposto num dos cantos da sala sobre uma outra mesinha – coqueluche da época Seus tapetes em cores discretas eram importados da pérsia, contrastando com a cor da pintura da sala – em óleo, num azul claro reluzente.

          Refletia sobre toda a sala um enorme lustre composto de 21 tubos que comportava as velas grossas de cera, que tinha como suporte o forro de madeira entalhada, suspensos com correntes douradas de meio metro cada, encerrando assim o requinte do ambiente. A todo instante seus empregados do setor batiam à porta a fim de se informar se nada lhe faltava. Paco recebia ao pé do ouvido, notícia através de Carlos que todos os escravos já haviam sido capturados e se encontravam todos bem, apenas sendo inquiridos naquele momento pelo contratador sobre os motivos que os levaram a inesperada fuga, e se havia algumas reivindicações a serem feitas.

         Paco, porém, muito perspicaz, sabia por outro lado, que as adesões dos três jesuítas à expedição era apenas uma questão de hora. Tinha em sua última explanação, adicionado os ingredientes necessários para fazê-los refletir melhor – o que faziam naquele momento. Parecia que todos os ventos sopravam em seu favor, tinha plena consciência disso, naquela circunstância falava mais alto a sua ambição, inerente a natureza de todos os homens da face da terra. Por isso, como um ser religioso, temente a Deus, acreditava piamente que sua obra tinha a aquiescência divina.

         Já se passava alguns minutos e os padres continuavam a andar de um lado a outro da sala, com os braços cruzados e com uma das mãos apoiando o queixo. Ramirez quis intervir, quando impedido pelo seu tio que com um gesto de mão o retirou da sala juntamente com ele, deixando apenas os três padres sozinhos.


         - Eles vão demorar assim mais alguns instantes. Ramirez, não se preocupe – é assim que eles fazem quando estão diante de alguns problemas para resolver. Vamos até a cozinha beber água que tenho certeza que alguma coisa de bom vai surgir daquelas três cabeças. Nisso ao passar pelo salão do empório e vê que as funcionárias ainda não foram embora. Pergunta a razão pela qual não foram ainda e a resposta vem de imediato:

         - Perdão Senhor Paco, é que todas querem ver os jesuítas, porque nunca os viram. Disse uma delas.

          Paco e Ramirez riem da ingenuidade das moças e prometem que assim que terminar a reunião vai apresentá-los  uma a uma com a promessa – que todas tomar-lhes-iam suas bênçãos. Foi uma festa entre elas. Não arredaram os pés do empório até ver cumprida a promessa do seu querido patrão e do seu sobrinho Ramirez. Após beberem água oferecida pela servente que estava no seu posto de plantão, voltam ao escritório e encontram os três já sentados na poltrona.

         -Então, que resolveram? Aflito, lhes pergunta Paco.

         -Você venceu Paco, nós iremos com Ramirez.

         Paco solta um urro de alegria! Abraça a Ramirez emocionado que por sua vez se entrelaça aos seus novos colegas de *périplo.

         -Vamos todos comemorar essa decisão histórica – eu sabia que vocês não iam me abandonar! Exclama com euforia Paco.

         -Antes, porém tio quer levar os meus três colegas de viagem até o empório que as moças estão impacientes esperando pelo cumprimento da promessa, lembra tio?

         -Ah, sim! Muito bem lembrado Ramirez, leve-os, por favor enquanto eu providencio o néctar dos deuses.

         -Quero prová-lo de tanto o Pe. Juan falar. Com risos disse o Pe. Francisco antes de ir ver as moças.

         -Dizem os árabes que esse licor é preparado para ser servido antes de uma nobre causa a ser discutida.  Ele costuma injetar inspiração, leveza de alma e clarividência.  Dizem mais que quando o néctar está sendo ingerido os deuses se fazem presentes e intervém em nossas mentes alterando o estado de consciência dos que o degustam. Tenho essas observações apenas na teoria, porquanto nunca às pratiquei. Dizem também que  este é preparado sob um ritual magnífico. Ao ingeri-lo pede-se a mesma reverência, pedindo ao universo clareza nas decisões.

        - É uma pena Paco, poderíamos tê-lo ingerido antes para nos anteciparmos aos fatos. Diz Pe. Francisco.

         - Creio que a inspiração nos arrebatou mesmo antes de bebê-lo, imaginem daqui para frente o que nos espera senhores!


Nota:  *Navegação em torno de um mar, de um país.
         - É, acho que você tem razão. Agora brindemos ao sucesso da expedição! 

         Sai o Pe. Francisco e entra Carlos, seu porta-voz nos negócios da empresa que ao ver os padres em companhia do Ramirez conversando com as funcionárias, incluindo sua filha Tereza, que pergunta ao Paco o que está acontecendo por ali. Ao que Paco respondera que as moças queriam conhecer de corpo presente os padres chamados de jesuítas e nada de mais que justo que os conhecessem pessoalmente e tomar-lhes suas bênçãos.  – Tem alguma coisa em contrário senhor Carlos? Pergunta Paco?

         -De maneira alguma, Paco – apenas me pareceu inusitado. Acho ótimo esse relacionamento.

         -Pedi para o Ramirez fazer a embaixada. Pois elas não arredaram os pés do empório até que eu cumprisse a promessa de apresentá-los a elas.

         -E fez muito bem. A propósito, tem alguma novidade? Pergunta Carlos.

         -Decerto que sim e não arrede os pés daqui que quero que comemore conosco o assentimento do Pe. Juan e dos seus colegas em irem à expedição.

         -Que maravilha! Você mesmo é imbatível!

          -Tive apenas um pouco de sorte Carlos, nada mais. Precisamos agora marcar a data da saída. O que você sugere?

         -Eu ainda não estou acreditando. Valeu essa notícia, ela compensa por todos os percalços que tivemos que passar hoje lá no cais do porto.

           -A propósito como foi à inquirição do Timóteo junto aos insurretos?

         -Ele ainda não me passou o relatório, vai fazê-lo hoje à noite e amanhã cedinho me entregará, fique frio.

         -Você ainda não sugeriu marcar a data?

         -Acho que não devemos marcar nada antes da opinião do Timóteo – ele sabe das coisas. Argumenta Carlos.

          -Tudo bem, então esperemos até amanhã. Comemoremos então as conquistas até o momento!

         Após breve celebração, seguida das despedidas dos três padres, eis que Paco, em companhia de Carlos e Ramirez rumam até o cais do porto a fim de encontrar-se com o capitão do navio para se inteirarem da viagem e dizer-lhe que os problemas burocráticos já foram todos sanados.


         O capitão Venâncio Escobar, embora de traços rudes, contrastava com a sua conduta de homem gentio e inteligente. Claro que sabia utilizar seus dois lados dependendo das circunstâncias. Era forte e alto, tostado pelo sol e acostumado aos fortes ventos que uivam nos oceanos.

         Também dominava alguns idiomas com muita facilidade. Conhecia os mares como a palma de sua mão. Tivera vários embates com a pirataria de alto mar. Vencera alguns nas armas – outros com sua perspicácia e diplomacia para contornar situações.

         Era respeitado nos mares por todos os navegantes. Tinha em sua tripulação alguns ex-piratas, homens de descortinos e voluntariosos que se fizeram amigos nos choques e entrechoques que tivera que se deparar. O navio não era seu, pertencia a uma companhia de navegação espanhola, mas parecia sê-lo, pois o tratava como se o fosse, e isso era uma das razões pelo qual gozava de grande prestígio junto ao seu armador.

         Era também viúvo. Num desses embates aconteceu a tragédia, perdeu sua adorada esposa, vitima de uma punhalada pelas costas. Ele ficara quase louco, pensou que nunca mais iria esquecer o trágico assassinato. Entretanto, com o passar do tempo, foi se dando conta de si e voltou à vida outra vez. Sobraram-lhe dois filhos que trabalham nos serviços burocráticos da empresa onde presta seus serviços.

         - Que bons ventos o trazem por aqui senhor Paco Sanchez de Pádua – em que posso servi-lo?  Pergunta-lhe o capitão Venâncio Escobar.

         - Vim lhe fazer-lhe uma visita capitão Escobar e me inteirar das coisas da viagem. Responde Paco.

         - Humm! Tudo sobre controle senhor Paco, exceto o contratempo que se deu com as fugas de alguns dos escravos, mas parece-me que já está tudo nos conformes.

         - Pois é capitão, fui informado – o que me intriga é desconhecer a causa desse desatino. Saberia o senhor dizer-me alguma coisa?

         - Lamento senhor Paco lhe privar de informações que acredito ser-lhe-iam de grande valia, mas no dado momento da fuga encontrava-me ausente, estava no escritório da empresa. Fui avisado logo depois por um dos meus homens. Corri até o cais e expuseram-me o acontecido.  Eles ainda são jovens, e essa idade os faz arredios e insubordinados – é normal esse tipo de coisa. Não se avexe não. Há um ditado muito popular que diz: “A carga só se ajeita no lombo do burro no decorrer da viagem.”

         - Precisamos então ter mais atenção quanto a esta demanda. Haverá bom suprimento a bordo, quero que providencie para nada lhes falte durante a viagem capitão Escobar!

         - Dentro do meu navio com toda a minha tripulação a postos, eu lhe garanto senhor Paco, que nada mais irá acontecer, nem mesmo por  indisciplina.
         - Realmente o motivo mais forte parece-me este o que o senhor acaba de apresentar – não pode haver outro, não é mesmo capitão?

          - Quando iremos zarpar senhor Paco? O meu pessoal já começa a ficar impaciente – não podem ficar muito tempo longe do mar – sentem falta – a vida deles é o mar que pulsa em suas veias. Já se acostumaram com isso.

         - Amanhã de manhã, lhe informarei quando os senhores zarparão, até lá comandante, controle por mais algumas horas os seus homens – será possível?

         - Já é uma grande notícia esta que o senhor acaba de me passar. Já dormirei mais sossegado hoje, sabendo que já estaremos brevemente conversando com os tubarões – também, confesso senhor Paco que não gosto muito de ficar parado em cais de porto por muitos dias – me dá uma comichão no corpo todo, o senhor entende!

         - Sim Capitão eu o entendo – é como um peixe estivesse fora d’água, fica saltitando o tempo todo. Riem os dois após o proveitoso diálogo.

         -Particularmente capitão, o senhor está precisando de mais alguma coisa? Se estiver, por favor, não faça cerimônia. Quero que o périplo transcorra na maior harmonia e tranquilidade e que nada falte a tripulação.

         - Muito me sensibiliza a sua oferta senhor Paco, mas nada nos falta, a companhia supervisiona muito esse tipo de coisas – não deixando nada faltar – de qualquer forma agradeço a sua generosidade e fique certo que o que depender desse velho lobo do mar, a missão será levada a cabo.

          - Disso eu tenho certeza comandante. Quando eu me dirigi a sua companhia para contratar um navio, eu lhes pedi o melhor comandante, e o senhor foi citado em primeiro lugar num grupo de vinte e cinco.

         - Isto muito me honra senhor Paco – agora mais ainda me chama à responsabilidade.

         - A propósito capitão, quantos dias demorará o périplo, tem alguma ideia?

          - Cinquenta e três dias senhor Paco, daqui do cais do porto até a baia de Guarapirocaba. Alguma pergunta mais senhor Paco?

          - Satisfeito capitão – estava dentro das minhas previsões.

         - Levando-se em conta senhor Paco, que o meu navio é mais ligeiro – embora de grande porte.  Tem as escotilhas menos angular na proa – isso o faz deslizar com mais rapidez do que os outros navios convencionais. Minhas velas menos cumpridas do que as outras, porém, mais largas, suportando mais toneladas de ventos que o impulsiona com mais estabilidade e mais tração.  Os navios convencionais têm dez bocas de remos em cada lado, já o meu senhor Paco, é composto de quinze por lado e com mais flexibilidade pelas condições de melhor conforto que lhe dá aos remadores em casos especiais de escassez de ventania.

         - Com essas informações favoráveis, fico mais tranquilo capitão quanto à proeza da nossa viagem.

        - O senhor deve arrefecer sua impaciência quanto à conclusão da missão.

         - Então já vou andando que me esperam em casa para o jantar. Fique em paz capitão que amanhã infalivelmente saberá quando o navio seguirá seu rumo. Passe uma boa tarde!

        - Que Deus o acompanhe senhor Paco!

          Assim seguiu Paco Sanchez de Pádua rumo a sua casa sendo acompanhado ao longe por seus seguranças. Quem poderia estar lhe esperando para o jantar a não ser sua dedicada empregada Alzira. Paco mentira descaradamente. Às vezes ele se perguntava o porquê de tantos investimentos, de tamanha responsabilidade. Será que valia a pena toda essa preocupação? Se ele já era um homem bem sucedido em seus negócios – rico. Não estaria jogando a sua vida numa empreitada que não tinha certeza do seu fim? Se qualquer rapariga da sociedade madrilense  ouvisse o estalo de seus dedos, já estaria de cócoras aos seus pés. Era um homem de meia idade, mas tinha um excelente porte atlético, bem apessoado, não era dado aos vícios, não fumava e nem bebia, tinha bons princípios; era religioso, tinha todas qualidades que as donzelas apreciavam.

         Juanita lá nas alturas haveria de compreender um novo casamento – aliás, talvez não fosse isso que ela tanto queria? Ao invés de vê-lo só nessa vida de aventuras por mais poder, esquecendo-se de ser novamente feliz ao lado de outra mulher que bem poderia dar-lhe o que ele mais desejou – um filho. Esses pensamentos martelavam forte em sua cabeça. Paco sentia pela primeira vez um vazio nas entranhas e uma solidão que lhe assomava os sentidos. Estava só, somente com seus negócios – não pensava em outra coisa a não ser neles. Estava certo isso? Tornava a se perguntar.  Se morresse agora a quem caberia sua fortuna? Estava justo esse tamanho sacrifício? Na sua memória cintilou o doce semblante da sua senhora  e a viu agora claramente sorrindo dando-lhe o consentimentos para uma nova paixão. Pela primeira vez depois da morte de Juanita, veio à tona  sua carência afetiva.

         Chegando em casa dirigiu-se diretamente ao seu quarto afim de tomar seu banho e se preparar para o jantar.  Antes de fazê-lo parou diante do espelho e pôs-se a se examinar – havia tempo que não o fazia. Só se dando conta quando Alzira bate à porta perguntando se poderia servir-lhe o jantar. Mais que de pressa se recompõe respondendo-lhe vagamente que só servisse depois que ele tomasse seu banho. Em seguida tirou sua roupa e entrou na banheira de água cálida e cheia de sais olorosos. Não se demorou muito dessa vez,  e nem se enxugou pra valer. Vestiu-se de pronto e seguiu para a mesa.  Pediu então que Elvira lhe servisse. Pensava consigo mesmo: nunca se deparara com uma situação igual a que estava sentindo agora. Irrompendo aquele estado de reflexão que se encontrava por mais de minutos, disse:

         - Alzira, como é mesmo o nome da filha do senhor Miguel de Cervantes? Aquela que mora ali na Rua Estreita, naquele sobrado pintado de azul e branco?

         - Glória.  Porque está perguntando senhor Paco?

         -Por nada Alzira, por pura curiosidade, somente isso.

         Alzira ao perceber uma pitada de interesse na pergunta do patrão, pôs mais pimenta na fervura:

         - Chamam-na de Glorinha – é uma moça muito prendada, e sobre tudo muito bonita, o senhor não acha? Acabou de se formar professora e parece que já está dando aulas.  Os rapazes lhe dão em cima, fazem-lhe a côrte, mas parece que ela não se envolve com ninguém. Gosto muito dela, é muito solícita e simples. Sempre quando a encontro, tocamos algumas palavras. Num dia destes, perguntou-me porque que o senhor permanece ainda só.

          - Ah é Elvira? E qual foi a sua resposta? Perguntou Paco interessado.

         - Respondi-lhe que tenho esperança que um dia o senhor vai pensar um pouco mais em si e  arranjar uma bela donzela. Fiz mal senhor Paco?

         - Não, não Elvira...pode ser mesmo que as suas esperanças algum dia se concretizem.

         - Tenho rezado bastante para isso, mas o senhor não está cooperando em nada – tem uma cabeça tão dura.

         Paco ensaiou um sorriso que a Alzira nunca tinha visto em seu semblante. Isso a entusiasmou a ir em frente e arrematou:

          - Quantas moças suspiram por um olhar seu – o senhor é que não nota – também vive aí fechado nesses seus negócios!  O senhor pensa que a D. Juanita lá em cima, e que Deus a tenha, está contente assistindo tudo isso? Ela vai se agradar mais ainda quando o senhor resolver tirar esse luto do seu coração.  Quer morrer velho, só e ranzinza? Nós precisamos que o senhor encha esta casa de crianças. Ela é muito triste, vazia...

         - Você está coberta de razão, Elvira. Espero por esses dias resolver um negócio intrincado. Daí em diante, vou pensar mais seriamente nesse caso, você vai ver – eu te garanto.

         - Assim é que se fala senhor Paco! Até que em fim saiu da quarentena. Deus escutou as minhas preces. Se depender de mim o senhor não ficará nem mais um dia solteiro.

         -Hei, hei, Alzira! Também não é tão fácil assim como pensa. Vamos devagar com o andor que o santo é de barro.

         -O senhor já perdeu tempo de mais, está na hora de arranjar de pressinha uma namorada e casar, isso sim! Pode ficar brabo comigo, eu não ligo!

           Paco, já em seu quarto, tentava ler a página seguinte do livro deixado sobre o criado mudo. Não consegue ir em frente, seus pensamentos estavam longe dali – não estavam ligados na viagem – incrível! Estava sim, impregnados às coisas que Alzira lhe dissera a respeito da senhorita Glorinha. Vou passar a observá-la com mais atenção – falando para si mesmo – longe de desconfiar que a Alzira houvesse percebido o seu interesse por ela, e que faria tudo para vê-los unidos.  Por outro lado, Alzira também não conseguia conciliar seu sono. Já os via namorados, de mãos dadas em véspera de casamento a passear pelo belo jardim da casa, cheio de flores coloridas, com bancos de encostos e espaldares. Ela estava lá, no meio do povaréu, dentro da Igreja Matriz de São Francisco de Assis, assistindo a cerimônia de casamento do seu querido patrão e de sua dileta amiga.  

         Queria ser a primeira a abraçar os dois com a consciência que essa união dependeu muito do seu trabalho. Estava feliz, pois via a casa que a vinte e sete anos serve com desvelo, com outros ares; cheia de crianças a correr de um lado para outro. Enfim, se via cúmplice de Juanita nessa obstinada jornada, e ambas tão espiritualmente unidas dividiriam a mesma satisfação pela certeza da missão quase cumprida.  Juanita por sua vez ficaria livre das amarras que a impedem de seguir o seu rumo. Como ensina a visão espiritualista um espírito não pode seguir seu rumo enquanto não estiver plenamente desprendido daquilo que neste mundo lhe aprisiona. Juanita aguardaria com paciência a consumação do enlace. De uma forma telepática já influenciava a sua boa e estimada amiga Alzira, pois afinal eram cúmplices. Como de costume, Paco seria o primeiro a chegar ao empório, seguido do seu contratador que atendendo ao pedido do Carlos veio marcar a data da viagem.

            - Descontando o domingo por ser o término dos festejos religioso do Padroeiro da cidade, poderemos zarpar na terça, dia 17 de janeiro. Que acha senhor Paco? Indaga Timóteo.

            - De minha parte Timóteo, acho ótimo! Não há razão para nos alongarmos. A tripulação está ficando impaciente de tanta ociosidade e os escravos também precisam de atividades o quanto antes. Há um ditado que diz: mente vazia, oficina do diabo.

           - Então está certo, o navio partirá terça-feira da próxima semana. Não haverá transferência de data, a não ser em caso de extrema necessidade. Agora se me der licença vou até o atacadista ver se já chegou o lote de açúcar que eu havia encomendado.

           - Vou mandar um recado para os padres que a viagem já foi marcada. Ah, me faça um favor Timóteo, avise o comandante Escobar da data da viagem que também tenho certeza que ficará muito radiante.

          - O senhor Carlos mandou entregar isso ao Ramirez – trata-se dos mapas.                 


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