- Paco meu amigo, é com
grande satisfação que estamos aqui. As
coisas estiveram agitadas estes últimos dias não? Pe. Juan percebe nos olhos de
Paco um brilho esfuziante de entusiasmo ao recebê-los.
- Pois é meu caríssimo
sacerdote e o senhor por onde andava que não dava as caras hein?
- Ossos do ofício me
impediram de procurá-lo por esses dias meu amigo. Me deixe apresentar seus novos amigos. Este é o Pe. Ricardo de
Albuquerque, de Andorra, e este é o Pe. Francisco Fanjúcio, meus colegas de
Ordem.
- Tenho o imenso prazer
em receber vocês em meu escritório. Estou radiantemente feliz por vocês terem
vindo – por favor, sem cerimônia, sentem-se. Este é o meu sobrinho Ramirez
Vitrúvio Almandez. Ouvi muito sobre
vocês. Pe. Juan os exalta fervorosamente.
-Temos levado muita sorte
em nossas embaixadas, isso sim. E isso nos estimula a exercitarmos cada vez
mais essa atividade. Disse o Pe. Francisco dirigindo-se aos seus colegas com
risos.
- Pelo jeito vocês devem
gostar muito de exercer essa diplomacia, não?
- Não! Acho que estamos
ocupando um lugar que de veria ser exercido pelos nossos governantes, e deixar
a Ordem de mãos livres para as coisas que realmente lhe são intrínsecas.
- Como, por exemplo?
Pergunta Paco.
- Apascentar índios,
caboclos, posseiros. Dar-lhes um pouco de educação, ensinando-lhes a ler e a
escrever, que é uma forma distinta de comunicação e integração dos povos. A
crença no monoteísmo e na religiosidade – incutindo-lhes que todos nós somos
irmãos, independentes de cor, raça, de ser rico ou pobre. Essa é a nossa função
precípua – foi para isso que Inácio de Loyola recebeu essa inspiração divina de
fundar a Ordem. Argumentou o Pe. Ricardo.
- A Ordem de Jesus foi
fundada para atuar nas selvas, nos lugares mais ermos do planeta e, para termos
como parceiros esses os quais o Pe. Francisco acabou de mencionar com muita
propriedade. Todavia, de vez em sempre, somos desviados de tais missões, não
por culpa dos nossos superiores, diga-se de passagem, mas pelo atrelamento que
se tornou cultura entre a Igreja e o Estado. É claro que temos lutado contra
essa situação, porém deparamos sempre com fortes resistências por parte do
Estado leviatã. Contra argumenta o Pe. Francisco.
- Tudo isso tem uma
origem: a dependência da Igreja ao Estado, advinda puramente da “necessidade”
entre aspas. Por outro lado, o clero não se importou em criar mecanismo que
resguardasse a sua independência, ou por comodismo mesmo, ou por puros
interesses inconfessáveis. Conclui Pe. Juan.
- Esse caldo vem desde o
século XI e se fortaleceu durante os anos, de forma que fica muito difícil
mudar o status-quo do dia para a noite. Mas ainda espero um dia que o Estado
será Estado e a Igreja, Igreja – harmoniosos sim, mas independentes. Disse
Paco.
-Todos nós esperamos tio
Paco, só assim a Igreja poderá cumprir com destaque o seu papel junto aos povos
e restabelecer a sua histórica missão aqui na terra.
Paco, após essas
observações – como se fosse uma espécie de aquecimento preliminar, ou um aperitivo
como queiram, voltou a abrir a gaveta de sua escrivaninha, e após retirar dela
os mapas, se pôs a descrever tudo que já fizera antes, aos olhos agora de mais
dois jovens jesuítas.
À medida que se
aprofundava em sua explanação, mais seus convidados se sentiam a vontade e mais
entusiasmados a ponto de já ensaiar perguntas, observações, retorquir em alguns
pontos etc. Porém, quem se divertia mesmo pra valer com toda essa história era
Pe. Juan com um risinho maroto disfarçado ao canto dos lábios, delatando-o aos
olhos atentos de Paco, que não se dando por vencido, enfrentava com tenacidade
seu escárnio sutil, como se estivesse pagando pra ver até onde ia o seu amigo
dileto com aquela pantomima extemporânea.
Entretanto, é importante
acrescentar em tudo o que já foi dito em seus dados biográficos, que Pe. Juan
sobre tudo, era um gozador contumaz. Com grande talento, conseguia transformar
em humor, quase tudo o que se apresentava sério. Isso era uma constante em sua
personalidade. E isso, Paco precisava urgentemente aprender a ir se acostumando
para não ter que se irritar sempre. Pe. Juan aprendeu a desenvolver esse seu
lado espirituoso, mais pela necessidade de ter que diluir os grandes problemas
que teve que enfrentar em seu cotidiano. Tinha em mente que quanto mais os
valorizamos, mais eles se tornam complicados e de difíceis soluções. Quando
você os minimizam ou os escarnecem, eles passam a ocupar um lugar comum dentro
do contexto de prioridades, dizia ele.
Eis a bula para todos os
problemas intrincados resolvidos por esse jovem jesuíta, nascido na Ilha de
Tenerife – uma das Canárias de possessão espanhola – conterrâneo do Pe. José de
Anchieta, falecido em 09/06/1597 no Brasil, na cidade que leva o seu próprio
nome.
Isso se deu com montes de casos relacionados
aos silvícolas, conflitos étnicos, os camponeses, e por último com a própria
Igreja. Diríamos até, que o Pe. Juan se tornara um mestre na embaixada de
integração dos povos em suas diferentes raças e conceitos. A empregada,
encarregada do serviço de cozinha, bate a porta do escritório, e pergunta se já
pode ser servido o café? Após o assentimento de todos, ela se retira e volta
logo em seguida trazendo-o sobre um carrinho que mais parecia uma refeição –
tanto eram os quitutes que o acompanhava que deixaram maravilhados os
convidados de Paco.
Paco por sua vez, embora
não quisesse demonstrar, ficara muito feliz em ter agradado a todos, e lançou
um olhar sutil de agradecimento à sua cafeteira que o percebeu e o retribuiu da
mesma forma. Fizeram uma pausa que durara mais que o previsto, haja vista a eclética mesa exposta aos convidados, ainda
estar sendo degustada sem nenhuma pressa.
- Vocês ainda não viram
nada – o Paco traz guardado um licor que afirma ser importado do Oriente-Médio
– é como estar sorvendo o néctar dos deuses como ele diz, e eu assino em baixo.
Comenta o padre.
- Agora Pe. Juan você
estragou a surpresa que eu queria deixar para o final da nossa palestra aos
meus novos amigos, e arrematar com bordado de fios de ouro a nossa sólida
amizade que pressinto estar nascendo aqui.
- A recíproca é
verdadeira meu Caro Paco – uníssonos redarguiram os padres Francisco e Ricardo.
- A hora que você quiser
dar prosseguimento a explanação, estaremos prontos. Fomos muito bem servidos e
confesso que nem me lembro mais da última vez que me deliciei com um tão farto
lanche, ainda mais preparado com mãos tão divinas como sua Elvira.
- Padre! Agradeço muito
sensibilizada pelos elogios tão
verdadeiros, e aproveito para tomar-lhe sua bênção.
Num gesto carinhoso, Pe.
Ricardo toma-lhe as mãos e elevando-as a meia altura, deu-lhe sua bênção, que
foi ratificada pelos demais padres presentes. Muito emocionada Elvira beijou as
mãos de cada um deles e retirou-se com os olhos marejados de tanta emoção.
Num breve relato, Paco
expõe aos demais presentes que a finalidade da expedição, além da integração
dos nativos é explorar as jazidas existentes na região, mais especificamente na
ilha, que pelos relatos dos seus antigos posseiros transmitidos através do seu
sócio português.
-Existe uma quantidade
incomensurável de ouro e prata em seu subsolo ainda inexplorada. Antes que
aventureiros e indivíduos de caráter duvidosos se apossem daquele lugar e
promovam uma carnificina com os nativos daquele lugar, por que não nós cidadãos
de boa índole não nos aventurarmos nesta empreitada?
Essas últimas palavras proferidas
por Paco causaram uns profundos impactos nos demais presentes – mais,
acentuadamente Pe. Juan, que a partir daí, passou a mostrar-se menos arredio
aos apelos do amigo, e se interessar mais pela causa.
- A nossa finalidade não é
compactuar com a pirataria, comprando seus produtos, adquiridos por meios
ilícitos – criminosos – mas sim, combatê-los dentro do nosso campo de atuação.
A nossa missão é sobre tudo, explorar o material que abundam à natureza e,
transformá-lo em produto comercializável, somente isso. Argumenta Paco.
– Foi por isso que eu
preparei essa expedição, analisei-a debruçadamente, pesando todos os pontos
contrários e vi que a nossa intervenção não tem nada de deplorável, é unir a
questão humanitária à comercialização, como regra precípua de desenvolvimento
de uma comunidade. Isso não quer dizer tirar o índio de seu habitat e
transformá-lo em um ser “cidadantino” – mesmo porque, pelos seus valores e
conceitos tão nobres não o quererá.
- Para quando está marcada
a viagem, Paco? Pergunta o Pe. Ricardo.
- Só está dependendo da
resposta do Pe. Juan e de vocês.
Por um instante os três
jesuítas se entreolharam e num ato contínuo, ensaiaram andar de um lado para
outro em postura de meditação na sala espaçosa do refinado escritório, ataviado
de quadros de grandes pintores espanhóis contemporâneos. Num dos lados da
parede, encontravam-se fileiras de poltronas em couro curtido, disposta a
acolher um número bem maior de visitantes. Havia outra escrivaninha menor,
distante um pouco da sua – que muitas vezes servia para uso de sua secretária
na redação de cartas, requerimentos, ofícios, contratos, etc. Chamava também
atenção, um mimeógrafo manual quadrado, de tamanho regular, exposto num dos
cantos da sala sobre uma outra mesinha – coqueluche da época Seus tapetes em
cores discretas eram importados da pérsia, contrastando com a cor da pintura da
sala – em óleo, num azul claro reluzente.
Refletia sobre toda a
sala um enorme lustre composto de 21 tubos que comportava as velas grossas de
cera, que tinha como suporte o forro de madeira entalhada, suspensos com
correntes douradas de meio metro cada, encerrando assim o requinte do ambiente.
A todo instante seus empregados do setor batiam à porta a fim de se informar se
nada lhe faltava. Paco recebia ao pé do ouvido, notícia através de Carlos que
todos os escravos já haviam sido capturados e se encontravam todos bem, apenas
sendo inquiridos naquele momento pelo contratador sobre os motivos que os levaram
a inesperada fuga, e se havia algumas reivindicações a serem feitas.
Paco, porém, muito
perspicaz, sabia por outro lado, que as adesões dos três jesuítas à expedição
era apenas uma questão de hora. Tinha em sua última explanação, adicionado os ingredientes
necessários para fazê-los refletir melhor – o que faziam naquele momento.
Parecia que todos os ventos sopravam em seu favor, tinha plena consciência
disso, naquela circunstância falava mais alto a sua ambição, inerente a
natureza de todos os homens da face da terra. Por isso, como um ser religioso,
temente a Deus, acreditava piamente que sua obra tinha a aquiescência divina.
Já se passava alguns
minutos e os padres continuavam a andar de um lado a outro da sala, com os
braços cruzados e com uma das mãos apoiando o queixo. Ramirez quis intervir,
quando impedido pelo seu tio que com um gesto de mão o retirou da sala
juntamente com ele, deixando apenas os três padres sozinhos.
- Eles vão demorar assim
mais alguns instantes. Ramirez, não se preocupe – é assim que eles fazem quando
estão diante de alguns problemas para resolver. Vamos até a cozinha beber água
que tenho certeza que alguma coisa de bom vai surgir daquelas três cabeças. Nisso
ao passar pelo salão do empório e vê que as funcionárias ainda não foram
embora. Pergunta a razão pela qual não foram ainda e a resposta vem de
imediato:
- Perdão Senhor Paco, é
que todas querem ver os jesuítas, porque nunca os viram. Disse uma delas.
Paco e Ramirez riem da
ingenuidade das moças e prometem que assim que terminar a reunião vai
apresentá-los uma a uma com a promessa –
que todas tomar-lhes-iam suas bênçãos. Foi uma festa entre elas. Não arredaram
os pés do empório até ver cumprida a promessa do seu querido patrão e do seu
sobrinho Ramirez. Após beberem água oferecida pela servente que estava no seu
posto de plantão, voltam ao escritório e encontram os três já sentados na
poltrona.
-Então, que resolveram?
Aflito, lhes pergunta Paco.
-Você venceu Paco, nós
iremos com Ramirez.
Paco solta um urro de
alegria! Abraça a Ramirez emocionado que por sua vez se entrelaça aos seus
novos colegas de *périplo.
-Vamos todos comemorar
essa decisão histórica – eu sabia que vocês não iam me abandonar! Exclama com
euforia Paco.
-Antes, porém tio quer
levar os meus três colegas de viagem até o empório que as moças estão
impacientes esperando pelo cumprimento da promessa, lembra tio?
-Ah, sim! Muito bem
lembrado Ramirez, leve-os, por favor enquanto eu providencio o néctar dos
deuses.
-Quero prová-lo de tanto
o Pe. Juan falar. Com risos disse o Pe. Francisco antes de ir ver as moças.
-Dizem os árabes que esse
licor é preparado para ser servido antes de uma nobre causa a ser
discutida. Ele costuma injetar
inspiração, leveza de alma e clarividência.
Dizem mais que quando o néctar está sendo ingerido os deuses se fazem
presentes e intervém em nossas mentes alterando o estado de consciência dos que
o degustam. Tenho essas observações apenas na teoria, porquanto nunca às
pratiquei. Dizem também que este é
preparado sob um ritual magnífico. Ao ingeri-lo pede-se a mesma reverência,
pedindo ao universo clareza nas decisões.
- É uma pena Paco,
poderíamos tê-lo ingerido antes para nos anteciparmos aos fatos. Diz Pe.
Francisco.
- Creio que a inspiração
nos arrebatou mesmo antes de bebê-lo, imaginem daqui para frente o que nos
espera senhores!
Nota: *Navegação em torno de um mar, de um país.
- É, acho que você tem razão. Agora brindemos
ao sucesso da expedição!
Sai o Pe. Francisco e
entra Carlos, seu porta-voz nos negócios da empresa que ao ver os padres em
companhia do Ramirez conversando com as funcionárias, incluindo sua filha
Tereza, que pergunta ao Paco o que está acontecendo por ali. Ao que Paco
respondera que as moças queriam conhecer de corpo presente os padres chamados
de jesuítas e nada de mais que justo que os conhecessem pessoalmente e
tomar-lhes suas bênçãos. – Tem alguma
coisa em contrário senhor Carlos? Pergunta Paco?
-De maneira alguma, Paco
– apenas me pareceu inusitado. Acho ótimo esse relacionamento.
-Pedi para o Ramirez
fazer a embaixada. Pois elas não arredaram os pés do empório até que eu
cumprisse a promessa de apresentá-los a elas.
-E fez muito bem. A
propósito, tem alguma novidade? Pergunta Carlos.
-Decerto que sim e não
arrede os pés daqui que quero que comemore conosco o assentimento do Pe. Juan e
dos seus colegas em irem à expedição.
-Que maravilha! Você
mesmo é imbatível!
-Tive apenas um pouco de
sorte Carlos, nada mais. Precisamos agora marcar a data da saída. O que você
sugere?
-Eu ainda não estou
acreditando. Valeu essa notícia, ela compensa por todos os percalços que
tivemos que passar hoje lá no cais do porto.
-A propósito como foi à
inquirição do Timóteo junto aos insurretos?
-Ele ainda não me passou
o relatório, vai fazê-lo hoje à noite e amanhã cedinho me entregará, fique
frio.
-Você ainda não sugeriu
marcar a data?
-Acho que não devemos
marcar nada antes da opinião do Timóteo – ele sabe das coisas. Argumenta
Carlos.
-Tudo bem, então
esperemos até amanhã. Comemoremos então as conquistas até o momento!
Após breve celebração,
seguida das despedidas dos três padres, eis que Paco, em companhia de Carlos e
Ramirez rumam até o cais do porto a fim de encontrar-se com o capitão do navio
para se inteirarem da viagem e dizer-lhe que os problemas burocráticos já foram
todos sanados.
O capitão Venâncio
Escobar, embora de traços rudes, contrastava com a sua conduta de homem gentio
e inteligente. Claro que sabia utilizar seus dois lados dependendo das
circunstâncias. Era forte e alto, tostado pelo sol e acostumado aos fortes
ventos que uivam nos oceanos.
Também dominava alguns
idiomas com muita facilidade. Conhecia os mares como a palma de sua mão. Tivera
vários embates com a pirataria de alto mar. Vencera alguns nas armas – outros
com sua perspicácia e diplomacia para contornar situações.
Era respeitado nos mares
por todos os navegantes. Tinha em sua tripulação alguns ex-piratas, homens de
descortinos e voluntariosos que se fizeram amigos nos choques e entrechoques
que tivera que se deparar. O navio não era seu, pertencia a uma companhia de
navegação espanhola, mas parecia sê-lo, pois o tratava como se o fosse, e isso
era uma das razões pelo qual gozava de grande prestígio junto ao seu armador.
Era também viúvo. Num
desses embates aconteceu a tragédia, perdeu sua adorada esposa, vitima de uma
punhalada pelas costas. Ele ficara quase louco, pensou que nunca mais iria
esquecer o trágico assassinato. Entretanto, com o passar do tempo, foi se dando
conta de si e voltou à vida outra vez. Sobraram-lhe dois filhos que trabalham
nos serviços burocráticos da empresa onde presta seus serviços.
- Que bons ventos o
trazem por aqui senhor Paco Sanchez de Pádua – em que posso servi-lo? Pergunta-lhe o capitão Venâncio Escobar.
- Vim lhe fazer-lhe uma
visita capitão Escobar e me inteirar das coisas da viagem. Responde Paco.
- Humm! Tudo sobre
controle senhor Paco, exceto o contratempo que se deu com as fugas de alguns dos
escravos, mas parece-me que já está tudo nos conformes.
- Pois é capitão, fui
informado – o que me intriga é desconhecer a causa desse desatino. Saberia o
senhor dizer-me alguma coisa?
- Lamento senhor Paco lhe
privar de informações que acredito ser-lhe-iam de grande valia, mas no dado
momento da fuga encontrava-me ausente, estava no escritório da empresa. Fui
avisado logo depois por um dos meus homens. Corri até o cais e expuseram-me o
acontecido. Eles ainda são jovens, e
essa idade os faz arredios e insubordinados – é normal esse tipo de coisa. Não
se avexe não. Há um ditado muito popular que diz: “A carga só se ajeita no
lombo do burro no decorrer da viagem.”
- Precisamos então ter
mais atenção quanto a esta demanda. Haverá bom suprimento a bordo, quero que
providencie para nada lhes falte durante a viagem capitão Escobar!
- Dentro do meu navio com
toda a minha tripulação a postos, eu lhe garanto senhor Paco, que nada mais irá
acontecer, nem mesmo por indisciplina.
- Realmente o motivo mais
forte parece-me este o que o senhor acaba de apresentar – não pode haver outro,
não é mesmo capitão?
- Quando iremos zarpar
senhor Paco? O meu pessoal já começa a ficar impaciente – não podem ficar muito
tempo longe do mar – sentem falta – a vida deles é o mar que pulsa em suas
veias. Já se acostumaram com isso.
- Amanhã de manhã, lhe
informarei quando os senhores zarparão, até lá comandante, controle por mais
algumas horas os seus homens – será possível?
- Já é uma grande notícia
esta que o senhor acaba de me passar. Já dormirei mais sossegado hoje, sabendo
que já estaremos brevemente conversando com os tubarões – também, confesso
senhor Paco que não gosto muito de ficar parado em cais de porto por muitos
dias – me dá uma comichão no corpo todo, o senhor entende!
- Sim Capitão eu o
entendo – é como um peixe estivesse fora d’água, fica saltitando o tempo todo.
Riem os dois após o proveitoso diálogo.
-Particularmente capitão,
o senhor está precisando de mais alguma coisa? Se estiver, por favor, não faça
cerimônia. Quero que o périplo transcorra na maior harmonia e tranquilidade e
que nada falte a tripulação.
- Muito me sensibiliza a
sua oferta senhor Paco, mas nada nos falta, a companhia supervisiona muito esse
tipo de coisas – não deixando nada faltar – de qualquer forma agradeço a sua
generosidade e fique certo que o que depender desse velho lobo do mar, a missão
será levada a cabo.
- Disso eu tenho certeza
comandante. Quando eu me dirigi a sua companhia para contratar um navio, eu
lhes pedi o melhor comandante, e o senhor foi citado em primeiro lugar num
grupo de vinte e cinco.
- Isto muito me honra
senhor Paco – agora mais ainda me chama à responsabilidade.
- A propósito capitão,
quantos dias demorará o périplo, tem alguma ideia?
- Cinquenta e três dias
senhor Paco, daqui do cais do porto até a baia de Guarapirocaba. Alguma
pergunta mais senhor Paco?
- Satisfeito capitão –
estava dentro das minhas previsões.
- Levando-se em conta
senhor Paco, que o meu navio é mais ligeiro – embora de grande porte. Tem as escotilhas menos angular na proa –
isso o faz deslizar com mais rapidez do que os outros navios convencionais.
Minhas velas menos cumpridas do que as outras, porém, mais largas, suportando
mais toneladas de ventos que o impulsiona com mais estabilidade e mais
tração. Os navios convencionais têm dez
bocas de remos em cada lado, já o meu senhor Paco, é composto de quinze por
lado e com mais flexibilidade pelas condições de melhor conforto que lhe dá aos
remadores em casos especiais de escassez de ventania.
- Com essas informações
favoráveis, fico mais tranquilo capitão quanto à proeza da nossa viagem.
- O senhor deve arrefecer
sua impaciência quanto à conclusão da missão.
- Então já vou andando
que me esperam em casa para o jantar. Fique em paz capitão que amanhã
infalivelmente saberá quando o navio seguirá seu rumo. Passe uma boa tarde!
- Que Deus o acompanhe
senhor Paco!
Assim seguiu Paco
Sanchez de Pádua rumo a sua casa sendo acompanhado ao longe por seus
seguranças. Quem poderia estar lhe esperando para o jantar a não ser sua
dedicada empregada Alzira. Paco mentira descaradamente. Às vezes ele se
perguntava o porquê de tantos investimentos, de tamanha responsabilidade. Será
que valia a pena toda essa preocupação? Se ele já era um homem bem sucedido em
seus negócios – rico. Não estaria jogando a sua vida numa empreitada que não
tinha certeza do seu fim? Se qualquer rapariga da sociedade madrilense ouvisse o estalo de seus dedos, já estaria de
cócoras aos seus pés. Era um homem de meia idade, mas tinha um excelente porte
atlético, bem apessoado, não era dado aos vícios, não fumava e nem bebia, tinha
bons princípios; era religioso, tinha todas qualidades que as donzelas
apreciavam.
Juanita lá nas alturas
haveria de compreender um novo casamento – aliás, talvez não fosse isso que ela
tanto queria? Ao invés de vê-lo só nessa vida de aventuras por mais poder,
esquecendo-se de ser novamente feliz ao lado de outra mulher que bem poderia
dar-lhe o que ele mais desejou – um filho. Esses pensamentos martelavam forte
em sua cabeça. Paco sentia pela primeira vez um vazio nas entranhas e uma
solidão que lhe assomava os sentidos. Estava só, somente com seus negócios –
não pensava em outra coisa a não ser neles. Estava certo isso? Tornava a se
perguntar. Se morresse agora a quem
caberia sua fortuna? Estava justo esse tamanho sacrifício? Na sua memória
cintilou o doce semblante da sua senhora
e a viu agora claramente sorrindo dando-lhe o consentimentos para uma
nova paixão. Pela primeira vez depois da morte de Juanita, veio à tona sua carência afetiva.
Chegando em casa
dirigiu-se diretamente ao seu quarto afim de tomar seu banho e se preparar para
o jantar. Antes de fazê-lo parou diante
do espelho e pôs-se a se examinar – havia tempo que não o fazia. Só se dando
conta quando Alzira bate à porta perguntando se poderia servir-lhe o jantar.
Mais que de pressa se recompõe respondendo-lhe vagamente que só servisse depois
que ele tomasse seu banho. Em seguida tirou sua roupa e entrou na banheira de
água cálida e cheia de sais olorosos. Não se demorou muito dessa vez, e nem se enxugou pra valer. Vestiu-se de
pronto e seguiu para a mesa. Pediu então
que Elvira lhe servisse. Pensava consigo mesmo: nunca se deparara com uma situação
igual a que estava sentindo agora. Irrompendo aquele estado de reflexão que se
encontrava por mais de minutos, disse:
- Alzira, como é mesmo o
nome da filha do senhor Miguel de Cervantes? Aquela que mora ali na Rua
Estreita, naquele sobrado pintado de azul e branco?
- Glória. Porque está perguntando senhor Paco?
-Por nada Alzira, por
pura curiosidade, somente isso.
Alzira ao perceber uma
pitada de interesse na pergunta do patrão, pôs mais pimenta na fervura:
- Chamam-na de Glorinha –
é uma moça muito prendada, e sobre tudo muito bonita, o senhor não acha? Acabou
de se formar professora e parece que já está dando aulas. Os rapazes lhe dão em cima, fazem-lhe a
côrte, mas parece que ela não se envolve com ninguém. Gosto muito dela, é muito
solícita e simples. Sempre quando a encontro, tocamos algumas palavras. Num dia
destes, perguntou-me porque que o senhor permanece ainda só.
- Ah é Elvira? E qual
foi a sua resposta? Perguntou Paco interessado.
- Respondi-lhe que tenho
esperança que um dia o senhor vai pensar um pouco mais em si e arranjar uma bela donzela. Fiz mal senhor
Paco?
- Não, não Elvira...pode
ser mesmo que as suas esperanças algum dia se concretizem.
- Tenho rezado bastante
para isso, mas o senhor não está cooperando em nada – tem uma cabeça tão dura.
Paco ensaiou um sorriso
que a Alzira nunca tinha visto em seu semblante. Isso a entusiasmou a ir em
frente e arrematou:
- Quantas moças suspiram
por um olhar seu – o senhor é que não nota – também vive aí fechado nesses seus
negócios! O senhor pensa que a D.
Juanita lá em cima, e que Deus a tenha, está contente assistindo tudo isso? Ela
vai se agradar mais ainda quando o senhor resolver tirar esse luto do seu
coração. Quer morrer velho, só e
ranzinza? Nós precisamos que o senhor encha esta casa de crianças. Ela é muito
triste, vazia...
- Você está coberta de
razão, Elvira. Espero por esses dias resolver um negócio intrincado. Daí em
diante, vou pensar mais seriamente nesse caso, você vai ver – eu te garanto.
- Assim é que se fala
senhor Paco! Até que em fim saiu da quarentena. Deus escutou as minhas preces.
Se depender de mim o senhor não ficará nem mais um dia solteiro.
-Hei, hei, Alzira! Também
não é tão fácil assim como pensa. Vamos devagar com o andor que o santo é de
barro.
-O senhor já perdeu tempo
de mais, está na hora de arranjar de pressinha uma namorada e casar, isso sim!
Pode ficar brabo comigo, eu não ligo!
Paco, já em seu quarto,
tentava ler a página seguinte do livro deixado sobre o criado mudo. Não
consegue ir em frente, seus pensamentos estavam longe dali – não estavam
ligados na viagem – incrível! Estava sim, impregnados às coisas que Alzira lhe
dissera a respeito da senhorita Glorinha. Vou passar a observá-la com mais
atenção – falando para si mesmo – longe de desconfiar que a Alzira houvesse
percebido o seu interesse por ela, e que faria tudo para vê-los unidos. Por outro lado, Alzira também não conseguia
conciliar seu sono. Já os via namorados, de mãos dadas em véspera de casamento
a passear pelo belo jardim da casa, cheio de flores coloridas, com bancos de
encostos e espaldares. Ela estava lá, no meio do povaréu, dentro da Igreja
Matriz de São Francisco de Assis, assistindo a cerimônia de casamento do seu
querido patrão e de sua dileta amiga.
Queria ser a primeira a
abraçar os dois com a consciência que essa união dependeu muito do seu
trabalho. Estava feliz, pois via a casa que a vinte e sete anos serve com
desvelo, com outros ares; cheia de crianças a correr de um lado para outro.
Enfim, se via cúmplice de Juanita nessa obstinada jornada, e ambas tão
espiritualmente unidas dividiriam a mesma satisfação pela certeza da missão
quase cumprida. Juanita por sua vez
ficaria livre das amarras que a impedem de seguir o seu rumo. Como ensina a
visão espiritualista um espírito não pode seguir seu rumo enquanto não estiver
plenamente desprendido daquilo que neste mundo lhe aprisiona. Juanita
aguardaria com paciência a consumação do enlace. De uma forma telepática já
influenciava a sua boa e estimada amiga Alzira, pois afinal eram cúmplices. Como
de costume, Paco seria o primeiro a chegar ao empório, seguido do seu
contratador que atendendo ao pedido do Carlos veio marcar a data da viagem.
- Descontando o
domingo por ser o término dos festejos religioso do Padroeiro da cidade,
poderemos zarpar na terça, dia 17 de janeiro. Que acha senhor Paco? Indaga
Timóteo.
- De minha parte
Timóteo, acho ótimo! Não há razão para nos alongarmos. A tripulação está
ficando impaciente de tanta ociosidade e os escravos também precisam de
atividades o quanto antes. Há um ditado que diz: mente vazia, oficina do diabo.
- Então está certo, o
navio partirá terça-feira da próxima semana. Não haverá transferência de data,
a não ser em caso de extrema necessidade. Agora se me der licença vou até o
atacadista ver se já chegou o lote de açúcar que eu havia encomendado.
- Vou mandar um recado
para os padres que a viagem já foi marcada. Ah, me faça um favor Timóteo, avise
o comandante Escobar da data da viagem que também tenho certeza que ficará
muito radiante.
- O senhor Carlos mandou
entregar isso ao Ramirez – trata-se dos mapas.
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