Todos estavam com aquele
friozinho na barriga. Ramirez apresenta os três jesuítas ao capitão Venâncio
Escobar, que os recebe em seu navio com um largo e caloroso sorriso,
acompanhado de boas vindas. Paco fica ao cais recepcionando a sua irmã mais
velha juntamente com sua sobrinha Mercedes, que parecem também visivelmente
emocionadas, só se acalmando com a chegada dos amigos de seu filho que lhes
encorajaram bastante, dizendo inclusive, que esta viagem fará muito bem ao
Ramirez, que ao voltar trará a decisão de sua vida na cabeça; inclusive pensar
em se casar e dar a ela o neto que ela tanto deseja. Isso, todavia, a fez
sorrir por instantes e acabou dizendo:
- Pensando bem, é bom
mesmo que esse menino fique um pouco longe da gente para poder dar mais valor
as coisas que tem. Nem bem terminou já
ouvira uma calorosa salva de palmas dos amigos de seu filho.
A ida dos amigos do
Ramirez até o cais do porto fora muito bem planejado por ele, uma vez pressentindo qual seria a reação de sua
mãe ao saber da arriscada trama. Agora
mais tranquilo debruçado na borda lateral do navio, ele contemplava tudo o que
se passava lá em baixo e se deliciava com tudo o que estava ocorrendo. Ao
cruzar o olhar com o seu tio Paco, faz um sinal com o polegar direito, o que
foi correspondido imediatamente por ele. Paco não arreda um instante os pés do
lado da irmã prevendo qualquer incidente de última hora. Recebe também as
companhias do seu contratador e do seu porta-voz que também se acham emocionados
pela contribuição dada aos arranjos finais.
-Missão cumprida chefe!
Agora é por conta deles. Disseram uníssonos os seus empregados.
-Vocês foram primorosos
nos preparativos. Só posso externar os meus sinceros agradecimentos.
-O senhor não tem nada que agradecer, muito
pelo contrário, nós que o temos pela confiança depositada até aqui em nosso
trabalho. Redarguiram.
Nesse instante o capitão
Escobar vem o mais próximo possível de Paco e faz um gesto com a mão direita
aberta como saudação e resoluto dá voz de comando a todos seus marinheiros para
içarem as velas. Com extraordinária perícia os marujos fazem o barco
rapidamente dar meia volta e se posicionar rumo ao seu destino. Todos retiram
seus lenços e começam a balançá-los freneticamente como forma de despedida. D. Almerinda
não contém as suas emoções e chora copiosamente nos braços do seu irmão caçula.
-Senhor Ramirez, quero
lhe mostrar os seus aposentos. Por favor, venha comigo. Os seus amigos já estão
acomodados. O navio não é tão espaçoso,
mas há lugar para todos.
-Desculpe-me capitão,
estava aqui pensando que até perdi a noção do tempo!
Notei isso senhor
Ramirez. O senhor devia estar viajando para bem longe mesmo. É natural, mormente
nesse estado em que se encontra agora, ter que deixar coisas tão importantes
para trás, as quais por tanto tempo nos acompanham e que são parte da nossa
vida.
- Embora não se tenha
muito que lamentar capitão Escobar, minha vida até aqui não tem se constituído
de grandes emoções tal como eu desejaria. Talvez nesse périplo oceano a fora,
eu encontre os componentes que façam vibrar as minhas estruturas emocionais tão
comumente em desuso.
-O mar, senhor Ramirez,
nos propicia oportunidades para a reflexão, cabe a cada um corrigir ou não atitudes e conceitos tão
arraigados dentro de nós até então.
- Capitão Escobar, minha
vida com a exceção das rotineiras idas e vindas nos negócios do meu tio, tem
sido de uma rotina sem precedente.
-Como já lhe disse senhor
Ramirez o mar vai lhe trazer todos os ingredientes que necessita para uma
renovação. Pode esperar.
- Este é o seu aposento.
Eu mesmo o escolhi por ser mais próximo aos seus amigos. Diz o capitão.
-Muito confortável capitão, obrigado! Dá para
avistar o oceano em toda a sua extensão até onde alcançam, é claro, as retinas
dos nossos olhos.
- Fico satisfeito em ter
gostado. Quero lhe comunicar também que daqui a duas horas realizaremos a nossa
primeira reunião para troca de ideias e informações e nos conhecermos melhor. O
senhor Garcia, a pedido meu, também se fará presente. Quero que o conheçam e
façam amizades.
- Acho excelente a ideia
de nos reunirmos logo!
- É bom saber que também
pense assim. Agora se me der licença deixá-lo-ei à vontade. Até mais senhor
Ramirez.
- Até mais tarde capitão
Escobar.
Pe. Juan em companhia dos
seus dois colegas preferiu ser servir do almoço junto aos negros no porão.
Queriam desde já iniciar o trabalho de reconhecimento e selar amizade. Conhecer
suas origens, sua cultura, religião e em que situação foram trazidos para a
Espanha. Tinham, todavia, plena convicção que esse trabalho não surtiria
resultado da noite para o dia, mas sentiram neles reciprocidade no início – já
era um bom começo.
Eles continuavam sendo
bem tratados, não lhes faltava nada, a pesar da intentona no cais do porto.
Encontravam-se até bastante descontraídos, a ponto de rirem pra valer das
brincadeiras do Pe. Francisco. As
brincadeiras chegaram a contaminar uma parte da tripulação que se encontrava
por ali a serviço, e os ecos de seus risos chegavam até a sala do capitão que
não sabia precisar de onde vinham. Isso é bom para a moral da tripulação, dizia
Garcia, corroborado pelo capitão Escobar que não se fazendo de rogado também se
apressou em descer ao porão.
- O capitão Escobar já
lhe avisou que daqui a pouco nós nos reuniremos em sua sala? Perguntou Pe. Juan
a Ramirez.
- Com certeza!
- Acho que aí vêm mudança
pelo caminho – arriscou o padre.
- Como assim? Perguntou
Ramirez.
-Bem, no momento são
ilações, só vamos saber mesmo na reunião. Respondeu Pe. Juan.
-Existem vários caminhos
para se chegar ao destino traçado, e pelo que eu sei estamos navegando por
caminho convencional, é só o senhor dar uma olhada aqui no mapa – pelo menos
por enquanto...
- Pelo que estou vendo
Ramirez, você já conhece bem os detalhes dos mapa hein?
-Foram sete dias de aulas
contínuas. Teoricamente aprendi, só falta à prática agora. Com efeito,
garanto-lhe Pe. Juan que não ficarei muito pelos meus aposentos e sim
contemplando diuturnamente o oceano em sua latitude e longitude, debruçado
nesta prancheta.
- Você parece que
incorporou inteiramente o espírito da missão. Isso só lhe fará bem com certeza,
pois não obstante ampliar seus conhecimentos, enriquecendo sua cultura, lhe
trará mais maturidade ao seu espírito e desviará por certo um pouco seus
pensamentos de Madri.
- Quanto ao último item
da sua observação não me preocupa nem um pouco, padre. Puxei pelo meu pobre
pai. Infelizmente ele se tornara um homem infeliz nos últimos tempos. O
casamento lhe tolheu todos os seus impulsos, seus sonhos de aventura, embora
sempre escondesse isso de todos. Não queria magoar minha mãe, embora a amasse
muito, trazia no sangue o estigma do homem aventureiro – de procurar a todo
custo desafios que lhe completassem sua
existência. Isso só se acentuou mais quando seus filhos já estavam moços e não
precisavam mais dele. Nesse vácuo seu espírito aventureiro não esmorecia, mas
aí já era tarde de mais, a idade já lhe consumia as energias. Eu fui seu confessor na hora de sua morte.
Esse detalhe me marcou profundamente. Isso me fez rever alguns planos de última
hora, como por exemplo, desfazer um namoro que tenderia inapelavelmente ao
casamento. Não iria suportar a desilusão que o meu pai suportou sofrendo
sozinho e calado.
- Engraçado Ramirez,
sempre estive com o seu pai, mesmo na mesa de xadrez, onde tínhamos tempo
suficiente para divagar, mas em instante algum ele demonstrou esse seu lado
incontido.
- Meu pai era um homem
muito discreto com as coisas íntimas que lhe diziam respeito. Eu só havia
tomado conhecimento desses fatos na hora de sua morte, quando então me
confessara, fazendo-me prometer não contar nada a minha mãe.
- Ele foi muito
responsável e nobre ao resistir em prol
da família todo os impulsos do seu espírito. Faço as minhas reverências a ele.
Disse Pe. Juan.
- Estive ontem em seu
mausoléu sozinho. Demorei–me desta vez o mais que das outras – por duas horas
ou mais, chegando até a perder a noção do tempo. Conversamos muito sobre tudo
isso, senti os eflúvios seguidos de uma paz imensa em minha alma, como se ele
estivesse me dando todo o apoio nas últimas decisões que tomei, e me abençoando
nessa minha viagem, entende padre!
- Perfeitamente. Seu espírito não suportaria vê-lo passar
pelas mesmas agruras passadas por ele.
- Foi isso exatamente que
eu senti padre. Não me arrependo em nada no que fiz. Agora sinto-me livre dos
grilhões do convencionalismo impositivo que me prendiam até então.
- É bem melhor assim.
Esta expedição estava marcada em seu destino. A empreitada demanda que
estejamos seguros e cheios de energias positivas para suportá-la.
- Fico feliz em saber
disso Pe. Juan! Quanto a mim, farei tudo o que estiver ao alcance para não
decepcioná-los.
-Antes tinha comigo que
esse seu propósito em assumir o comando da expedição, não passasse de uma
vaidade pessoal ou impulso momentâneo que logo se desvaneceria com o passar dos
dias de solidão aqui no interior deste navio. Com efeito, nos traria sérios
problemas, deixando à deriva nosso projeto. Depois do altíssimo investimento
feito pelo seu tio, pelo qual tenho o maior apreço, não seria nada agradável.
-Meu espírito intrépido
de emoções, não via à hora da chegada de uma oportunidade como esta – queria,
entretanto, que me encontrasse já despojado das amarras de quaisquer
compromissos. E Isso tudo veio a calhar com as medidas drásticas por mim
tomadas anteriormente.
- Você quer dizer no
rompimento do noivado?
- Não só essa, mas outras também, Pe. Juan.
- De qualquer forma fico
mais aliviado e mais seguro, com a certeza que você encarnou inteiramente o
espírito da jornada, porque queira ou não, você é o chefe da empreitada – é o
nosso comandante mor, e nada melhor é saber que este comando encontra-se em
mãos firmes e cabeça no lugar. Agora se me der licença vou continuar pondo as
coisas em ordens lá em meus aposentos.
Faltavam poucos minutos
para o início da reunião. Tudo reinava na mais absoluta calma, até o mar
desdenhoso cooperava com o cenário - com suas ondas batendo leve no casco do
navio. Não havia sinal de mau tempo; o céu se revestia de nuvens brancas como a
neve, que muito lentamente se movimentavam. O vento sul soprava como uma brisa
refrescante nas faces dos tripulantes, tendo o sol quase a se recolher no
horizonte. As aves marinhas revoavam sibilantes em busca de alimentos. Do navio
já pouca coisas se via da terra, o resto era só mar bordado de um azul
turquesa.
A disposição de ânimo já
ensaiava seus primeiros acordes no comportamento da marujada. Já dava para
perceber a alegria no semblante de cada um deles. O mar era-lhes suas vidas,
seus sangues correndo nas veias. Cinquenta e três dias até a ilha de Sambaqui,
ah! Pra eles era uma espécie de êxtases.
Um comissário foi enviado
aos aposentos de cada um para convocá-los a mando do capitão Escobar que se
encontrava já em seu escritório, pronto para iniciar a reunião. Decididos todos
rumaram para lá. Após os cumprimentos de praxe, o capitão Escobar
apresenta-lhes o seu braço direito, imediato Garcia, um homenzarrão de 90
quilos bem distribuídos em seus um e oitenta e cinco de altura. Dentes
escurecidos pelo tabaco, barba espessa e um brinco na orelha esquerda. Cabelos a
altura dos ombros, lenço cobrindo a testa inteira com as pontas amarradas atrás
da cabeça. Moreno claro, corpo atlético; nos seus vinte e nove aventureiros
anos, nada o intimidava. Lépido como um preá, e calado como um túmulo.
Perspicaz e talentoso, enormes olhos azuis lhe completavam a aparência. Após o
reconhecimento de cada um, passou a escutar com atenção o seu capitão.
- Reuni os senhores aqui,
primeiro para desejar-lhes uma feliz estadia em meu navio, e se alguma coisa os
incomodar, por favor, exijo dos senhores que me tragam os seus reclames para que eu possa sanar no
mais curto tempo possível. Segundo, como é do conhecimento dos senhores,
estamos atravessando neste exato momento os Açores, este aglomerado de ilhas de
possessões portuguesas. Mais lá na frente está São Miguel a maior delas, que em
sentido paralelo a oeste, se avista a Ilha da Madeira. Portanto, estamos
exatamente dentro dos limites dos mares de Portugal. Pois bem, se dobrarmos
aqui neste ponto para o sentido sul, permaneceria encostado às possessões, e
estaríamos sendo mais vigiados ainda, sujeito a vistoria no navio. Isso faz
parte do tratado entre o nosso país e o deles. Todavia, se decidirmos mudar a
rota, ou seja, irmos mais em frente, latitude oeste, nos aproximando mais de
Hamilton, nas Bermudas.
Ficaríamos no centro do Atlântico e
por conseguinte, longe o bastante da sua vigilância, não obstante estarmos
ainda navegando em suas águas. Nossa intenção depois de ouvirmos os senhores é
decidir pela melhor opção. Lembrando que o centro do oceano nos oferece mais
perigo com ondas acima de três metros e outros riscos a mais. Porém, só
navegaremos dentro desse perímetro umas 400 milhas, depois retornaremos mais a
costa a partir das Ilhas Virgens americanas e britânicas. Como já disse o meu
navio é de grande porte, suportará esse açodamento oceânico causados pelo vento
mais forte naquela região, mas o pessoal que viaja no porão sentirá muito com a
mudança abrupta do comportamento marítimo. É o risco que se pode correr. Por
isso, quero ouvir um por um dos senhores.
- Capitão
Escobar, sendo essa é a rota mais calma por que alterá-la? Arguiu o Pe.
Arnaldo.
- Normalmente
Pe. Arnaldo, esse é o caminho mais utilizado por todos nós navegadores,
entretanto se os senhores observarem da janela, verão uma quantidade enorme de
navios de bandeira portuguesa rondando a sua costa marítima, coisa incomum
nessa época do ano. Como disse normalmente a zona sempre está livre,
desimpedida. Ademais, fui informado pelos comandantes dos navios da nossa frota
que acabavam de atracar no cais, que muitos dos nossos navios foram detidos
para averiguações. Alguém mais quer fazer alguma pergunta?
- Diante desses
argumentos insofismáveis, a minha opção é pela variante. Nós estamos lotados de
mantimentos, ferramentas e de escravos no porão. Isso com toda a certeza suscitaria
desconfiança, chamaria a atenção dos portugueses, criando por consequência até
um impasse, pois teríamos que explicar esse fato e isso seria um risco temível.
Atrasaria toda viagem e inviabilizaria nossa missão. Argumenta Ramirez.
- Estou com o capitão
Escobar! É muito arriscada a primeira opção, está certo que é mais calmo, mas
não deixa de ser perigoso para os nossos planos. Diz Pe. Juan.
Os demais também acabaram
concordando com o capitão Venâncio Escobar. Prontamente o imediato se levanta e
sentencia:
- Desta forma eu vou
passar agora mesmo o novo plano ao timoneiro, e pedindo licença se retirou da
sala.
- Fico contente por ter
reinado nessa sala o espírito da sensatez e da concórdia comumente manifesto
nos senhores. Agora mais aliviado manifesta-se o capitão.
- Agora a parte mais
difícil caberá aos padres que deverão descer ao porão e preparar os negros para
algumas horas de suplícios se por ventura tiverem que passar. Manifesta-se
Ramirez.
- É o que pretendemos
fazer. Se não tiver mais nada de relevante a ser tratado gostaria de me dirigir
ao porão. Responde Juan.
-Não padre, pelo menos de
minha parte. A não ser que alguns dos cavalheiros tenham mais alguma coisa a
acrescentar.
Como ninguém quisesse
mais se manifestar, o capitão Escobar deu por encerrada a reunião, mas
deixou-os em sobreaviso para quaisquer novidades que por ventura viesse a
ocorrer no transcurso da viagem.
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